Técnica para embalsamar cadáveres aperfeiçoada por investigadores portugueses
Uma equipa da Universidade Nova de Lisboa desenvolveu uma nova técnica de embalsamamento que permite preservar cadáveres durante vários anos para o ensino da anatomia. Está protegida por uma patente portuguesa desde 2011.
A prática de dissecação de cadáveres, considerada indispensável na formação de profissionais de saúde, precisa de corpos tão bem preservados como o de Xin Zhui, com mais de dois mil anos, e que foi descoberto em 1971 em condições semelhantes às de uma pessoa falecida há pouco tempo. Por isso, uma equipa de investigadores da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e da Faculdade de Ciências e Tecnologias (FCT), ambas da Universidade Nova de Lisboa, desenvolveu uma técnica de embalsamamento que preserva o corpo desde seis meses até vários anos.
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A prática de dissecação de cadáveres, considerada indispensável na formação de profissionais de saúde, precisa de corpos tão bem preservados como o de Xin Zhui, com mais de dois mil anos, e que foi descoberto em 1971 em condições semelhantes às de uma pessoa falecida há pouco tempo. Por isso, uma equipa de investigadores da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e da Faculdade de Ciências e Tecnologias (FCT), ambas da Universidade Nova de Lisboa, desenvolveu uma técnica de embalsamamento que preserva o corpo desde seis meses até vários anos.
“As outras técnicas provocam rigidez. A nossa permite, sem dúvida, um melhor ensino”, afirma o médico João Goyri O’Neill, director do Departamento de Anatomia da FCM, que explica também que, enquanto nos modelos anatómicos tudo é igual, no corpo humano cada caso é um caso. As pessoas, ao contrário dos modelos, apresentam diferenças anatómicas. “É fundamental que possamos ter corpos para trabalhar e, para isso, temos de ter material [cadavérico] que tem, obviamente, de estar em boas condições.”
Foi para melhorar as condições de preservação e conservação de cadáveres que João O’Neill desenvolveu uma técnica e começou a liderar, em 2006, uma equipa de investigadores para aperfeiçoar o processo de embalsamamento, utilizado desde o tempo dos egípcios para preservar e desinfectar o corpo humano após a morte (reduz a presença e crescimento de microorganismos, como fungos e bactérias, retarda a decomposição orgânica e restabelece a aparência natural).
A técnica, divulgada recentemente em comunicado de imprensa da FCM, consiste na injecção arterial em cadáveres de uma solução de embalsamamento – uma combinação de álcoois alifáticos (dietilenoglicol e etilenoglicol), que, embora tóxica, não representa risco de saúde para quem manuseia os cadáveres, quer sejam investigadores ou estudantes, uma vez que não há produção de vapores nem existe contacto directo com o produto.
Mas como é que se realiza a injecção? O ideal é utilizar o que se chama “sistema automático de perfusão para injecção arterial”, através das artérias do fémur, para distribuir a solução por todo o corpo. Perante a inexistência no mercado de equipamentos suficientemente eficazes, Paulo Ribeiro, do Centro de Física e Investigação Tecnológica da FCT, e João Lagarto, na altura aí aluno de engenharia biomédica, foram desafiados por João O’Neill a inventar uma máquina especialmente concebida para o efeito.
“O segredo é precisamente a maneira como injecta o fluido”, assegura Paulo Ribeiro. Pedida em 2009, a patente da máquina foi registada em 2011 no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. E em 2013, a equipa apresentou pela primeira vez a técnica à comunidade científica, num artigo (em inglês) na Acta Médica Portuguesa, revista científica da Ordem dos Médicos. “Esta técnica e a máquina permitem a preparação de cadáveres embalsamados em boas condições, possibilitando exames patológicos e forenses e a preservação a longo prazo do material cadavérico”, lê-se.
Mil corpos testados
A máquina possui uma bomba de injecção pulsada (bombeia a solução no corpo de forma semelhante a um coração, em vez de a injectar continuamente). Além disso, permite controlar o fluxo, a pressão e a temperatura da solução, ao mesmo tempo que fornece informações rigorosas sobre o que se está a passar durante o embalsamamento.
Os cadáveres não apresentam um aumento da rigidez da pele, nem separação das camadas de pele nem alterações significativas de cor. Preservam ainda a frescura, integridade e mobilidade de todas as estruturas, bem como dos músculos, dos órgãos e das articulações. “As variações [anatómicas] que cada pessoa apresenta estão lá [nos corpos embalsamados]”, sublinha João O’Neill.
Existem casos de corpos, acrescenta o médico, preservados até cinco anos com a nova técnica. Já embalsamados, são colocados em sacos térmicos e armazenados em câmaras frigoríficas, tal como vemos nas séries de televisão, “tipo CSI, igualzinho”. “Até poderão durar cinco mil anos como as múmias egípcias”, brinca João O’Neill.
Ou durar dois mil anos como Xin Zhui, a mulher do marquês de Dai, da dinastia Han, que foi encontrada num túmulo na província de Hunan, na China. Estava “extraordinariamente bem preservada”, como refere um artigo de Erich Brenner, da Universidade Médica de Innsbruck (Áustria), publicado em 2014 na revista científica Journal of Anatomy.
Mas as múmias, ao contrário do que acontece actualmente, eram embalsamadas com recurso a produtos mais naturais (extractos de plantas, gorduras animais, cera de abelhas ou resina de coníferas). Mesmo que fosse possível preservar um corpo durante tanto tempo como as múmias egípcias ou Xin Zhui, hoje não há espaço para armazenar todos os cadáveres que chegam à FCM. “Se existisse um centro nacional de recepção e distribuição de cadáveres, as outras escolas médicas não tinham falta de corpos”, defende João O’Neill.
Para além de a nova técnica permitir um melhor aproveitamento dos corpos doados para a ciência, o Departamento de Anatomia da FCM recebe, segundo João O’Neill, entre 80 a 100 cadáveres por ano e as doações em vida estão perto de ultrapassar as três mil. Depois da utilização dos cadáveres pelos investigadores e professores, informam-se os familiares para se poder proceder à cremação dos corpos – ou ao enterro, caso o doador tenha manifestado essa vontade.
Usada há cerca de dez anos na FCM, a técnica já permitiu o embalsamamento de 800 a 1000 cadáveres para a prática regular de dissecação, tanto para o ensino de estudantes de medicina como para o desenvolvimento de uma plataforma alargada de cursos de especialização para médicos e de treino cirúrgico, incluindo a formação laparoscópica (método usado, por exemplo, para retirar a vesícula biliar). Desde então, a técnica tem continuado a ser aperfeiçoada e a primeira máquina (o protótipo 0) será substituída em breve por um novo modelo (protótipo 1), com funcionalidades e design melhorados.
Segundo João O’Neill, a técnica também começará a ser usada no Instituto de Ciências Médicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, embora sem o equipamento inventado por Paulo Ribeiro e João Lagarto. E há um interesse crescente em testar as inovações desenvolvidas, incluindo por profissionais estrangeiros, sublinha o comunicado de imprensa – razão pela qual a técnica foi referida pela equipa de Joy Balta, da University College de Cork (na Irlanda), num artigo de 2015 de revisão das várias técnicas de preservação do corpo humano.
Publicado na revista científica Clinical Anatomy, o artigo defende que “existe necessidade de prolongar o período de preservação de um cadáver para maximizar o número [de pessoas] que vai beneficiar dele”. E destaca a técnica portuguesa, entre outras a nível mundial, como tendo a solução química livre de formol (que é cancerígeno) que preserva corpos durante mais tempo. Afirma ainda que a doação de corpos para a ciência é um acto generoso, que não só contribui para o ensino da anatomia como possibilita testar novas técnicas de embalsamamento.
“O uso do embalsamamento nas ciências modernas requer que se passe de uma prática transmitida de ‘boca em boca’ para uma disciplina científica baseada mais em investigação”, considera o artigo na Clinical Anatomy. “Um cadáver doado pode ser descrito como um recurso partilhado, usado por académicos, investigadores e clínicos”, acrescenta-se.
“A preservação e conservação de cadáveres permitem ensinar e investigar”, resume por sua vez João O’Neill. “Aquilo que fazemos do ponto de vista macro e microcirúrgico ainda é muito pouco. A natureza humana é mais perfeita do que pensamos.” Os corpos doados para investigação científica podem assim ajudar a desvendá-la um pouco mais.
Texto editado por Teresa Firmino