Uma moca, com pregos

Excelentíssimos Senhores Doutores Juízes, lamento imenso mas tivesse a mesma moca, com pregos, vitimado uma mulher, filha, mãe ou sobrinha vossas e não estaríamos aqui com esta conversa, com ou sem Bíblia, com ou sem depressão

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A mulher, adúltera, sexualmente imoral, levou com uma moca, com pregos, na cabeça. Não consigo imaginar a violência, o sangue, o corpo agredido, o medo, a morte à frente dos olhos nas mãos primitivas de um viajante no tempo vindo directamente de um Paleolítico em nada distante, antes pelo contrário, bem presente na raiva Neandertal de quem se diz traído, como se fosse seu o direito de fazer justiça, ser juiz e ao mesmo tempo carrasco sem julgamento prévio.

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A mulher, adúltera, sexualmente imoral, levou com uma moca, com pregos, na cabeça. Não consigo imaginar a violência, o sangue, o corpo agredido, o medo, a morte à frente dos olhos nas mãos primitivas de um viajante no tempo vindo directamente de um Paleolítico em nada distante, antes pelo contrário, bem presente na raiva Neandertal de quem se diz traído, como se fosse seu o direito de fazer justiça, ser juiz e ao mesmo tempo carrasco sem julgamento prévio.

A mulher impura, cujos actos ditam, ou assim rezam as escrituras, a morte por lapidação (vulgo apedrejamento), mereceu levar com uma moca, com pregos. Porquê? Porque através dos seus actos, pensamentos e acções humilhou, desonrou e conspurcou o nome do seu marido. Ou, pelo menos, assim pensam os juízes, e mesmo que só tenha sido um juiz (não foi um, foram dois) o mal já está feito e por um pagam todos os outros, assim lançando na lama o nome de uma região, e todo um sistema judicial por arrasto, ainda presa ao preconceito, à discriminação e desigualdade num mundo onde a mulher é, hoje e sempre, vista como um ser inferior, a costela de um homem, a pecadora e tentadora responsável pela expulsão do Jardim do Éden e, portanto, o alvo natural desta vingança eterna ainda longe de chegar ao fim.

A mulher traidora, conspiradora, devassa, foi vítima de si própria e sobre o marido não deve recair qualquer processo de culpa. O marido, pobre coitado, estava deprimido e, por conseguinte, é inimputável. Já à mulher nada menos que a morte em vida, lenta e com requintes de malvadez, por favor, no pelourinho para júbilo da populaça, ávida de sangue, os dentes arreganhados, as unhas cravadas nas próprias peles enquanto os olhos, arregalados, esperam.

Já Saramago dizia bastar olhar à volta para perceber como ainda não somos Humanos, como ainda estamos por realizar como seres Humanos. Evolutivamente ainda não chegámos lá. Uma mulher em Felgueiras foi atacada com uma moca. A única diferença entre isto e o que os homens de Neandertal faziam às suas mulheres é o facto de a mesma moca, 2 milhões de anos volvidos, ter pregos.

Excelentíssimos Senhores Doutores Juízes, lamento imenso mas tivesse a mesma moca, com pregos, vitimado uma mulher, filha, mãe ou sobrinha vossas e não estaríamos aqui com esta conversa, com ou sem Bíblia, com ou sem depressão, por certo prontamente citando a Constituição em nome de uma condenação tão óbvia, tão justa, e no entanto ainda em falta.