A seca chegou ao Algarve e os peixes já estão quase a nadar em seco
Caíram as primeiras chuvas de Outono, mas o sufoco do stress hídrico não terminou. O Algarve, ignorando as evidências, continua a fazer jardins à inglesa com amplos relvados, como se o que mais houvesse nestas paragens fosse água. E o deserto (Norte de África) ali tão perto...
As folhas das árvores pálidas (ou murchas) são os sinais mais visíveis da seca que não se sabe quando é que poderá terminar. Nas ribeiras, um pego aqui, uma poça acolá retratam as bolsas da biodiversidade que ainda resistem. A situação não é nova, mas há motivos de preocupação. A bióloga do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), Ana Cristina Cardoso, revelou ao PÚBLICO que já tem tanques preparados para resgatar os peixes que estão quase a nadar em seco nos afluentes do Guadiana.
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As folhas das árvores pálidas (ou murchas) são os sinais mais visíveis da seca que não se sabe quando é que poderá terminar. Nas ribeiras, um pego aqui, uma poça acolá retratam as bolsas da biodiversidade que ainda resistem. A situação não é nova, mas há motivos de preocupação. A bióloga do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), Ana Cristina Cardoso, revelou ao PÚBLICO que já tem tanques preparados para resgatar os peixes que estão quase a nadar em seco nos afluentes do Guadiana.
“[Se a seca continuar,] vamos ter de ir salvar peixes”, diz. A operação não é inédita. Quando se deu a grande seca de 2004/2005, recorda, algumas das espécies endémicas ameaçadas, tais como a boga-do-guadiana e o barbo-de-cabeça-pequena, foram salvas pela equipa do Parque Natural do Vale do Guadiana.
Os alertas para esta e outras situações relacionadas com a escassez de recursos hídricos vieram a público a meio da semana passada, em Castro Marim, na apresentação do Projecto de Valorização Ambiental e Gestão da Água do Guadiana Transfronteiriço — Valagua.
Por seu lado, a empresa Águas do Algarve, responsável pelo abastecimento de água na região, desdramatiza. “Mesmo que não chova no próximo ano, está assegurado o abastecimento doméstico”, garante a porta-voz da empresa, Teresa Fernandes, salvaguardando que não poderá dar a mesma garantia em relação à água para a agricultura. A Direcção Regional de Agricultura, entretanto, também foi a Castro Marim, na passada quarta-feira, dar a conhecer o plano do Governo (à semelhança do que foi feito para o Alentejo) para minimizar os efeitos da seca. Poupança é a palavra de ordem.
O rio Guadiana é o cordão umbilical que liga as populações do Nordeste algarvio às terras do interior, mas quando falta a água nas ribeiras adjacentes avolumam-se as incertezas quanto ao futuro.
Existe, é certo, a obrigatoriedade da partilha de informação e gestão conjunta dos caudais nos rios transfronteiriços entre Portugal e Espanha. Através da Convenção de Albufeira, assinada em 1998, estão assegurados os caudais ecológicos. Porém, a passagem à prática do acordo não se tem revelado fácil. Presente no encontro em Castro Marim, a directora do Departamento de Recursos Hídricos da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), Felisbina Quadrado, revelou: “Só a partir de 2014 é que definimos a metodologia para fazer os mapas que casem uns com os outros.” Cada um dos países, justificou, “tinha as suas leis, o que dificultava o planeamento comum”. Agora, o projecto Valagua, defendeu o hidrogeólogo da Universidade do Algarve José Paulo Monteiro, vai “optimizar a gestão nas zonas mais próximas da fronteira, já que, admite, ainda existe uma grande distância a percorrer para cumprir os objectivos da Directiva- Quadro da Água, que obriga todos os países a fazerem planos de gestão de bacia hidrográfica. No caso do Algarve, preconiza, o modelo de uma boa gestão dos recursos hídricos passaria pela incorporação de 15% de água das captações subterrâneas na rede de abastecimento público, alimentada por um sistema de barragens. “Diminuía a fragilidade e probabilidade de haver falhas”, enfatiza.
Oito anos de seca
Nos últimos dias, as nuvens cinzentas que pairam no ar transportam esperanças de melhor tempo para a agricultura. Mas as estatísticas não mentem: a cada década que passa há uma seca severa. No Baixo Guadiana, adiantou Ana Cristina Cardoso ao PÚBLICO, “assiste-se a uma diminuição de volumetria dos pegos [nos afluentes do Guadiana] desde 2012”. E o mais grave, sublinha, é que a situação tem-se vinda a arrastar: “Estamos em seca desde 2009 — o último ano chamado ‘húmido’”, segundo a classificação do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Por isso, a equipa pluridisciplinar do Parque Natural do Vale Guadiana, está a procurar salvar os habitats, junto às poças e pegos que ainda persistem, evitando a morte de animais e plantas.
“Na vegetação ribeirinha, cada espécie de libélula escolhe uma planta especifica onde gosta de pôr os ovos”, exemplificou a bióloga, enfatizando a ideia de que o mundo animal e vegetal se cruzam nessas zonas húmidas e a qualidade de vida depende também desse equilíbrio.
O presidente da Câmara de São Brás de Alportel, Vítor Guerreiro, PS, diz que quer pôr em marcha um programa de sustentabilidade ambiental, tendo em conta tudo o que se está a passar a nível global. “Vou mandar arrancar a relva dos jardins, plantando aí espécies autóctones, de baixo consumo de água.” A decisão compagina-se com a tese Origem dos jardins e parques paisagistas em Inglaterra e a sua difusão, defendida pela investigadora Sónia Azambuja e apresentada durante a conferência realizada na semana passada na Universidade do Algarve (Ualg).
Os primeiros jardins relvados que se conhecem, disse Sónia Azambuja, surgiram em Portugal por influência inglesa no século XVIII/XIX no parque de Monserrate (Sintra). E o primeiro relvado com jardim real, acrescentou, surgiu na Tapada das Necessidades, no tempo de D. Fernando. Uma outra curiosidade: “A primeira máquina corta-relva foi para ali por volta de 1841 (a factura encontra-se no arquivo da Casa de Bragança).” Porém, as alterações do clima, enfatiza, obrigam a repensar a arquitectura paisagista. A investigadora, com um doutoramento sobre a representação das plantas na arte portuguesa do século XV e XVI, não aprova os jardins “à inglesa”, como os que se encontram por todo o Algarve turístico. “As plantas autóctones estão adaptadas ao clima e consomem pouca água”, defende.
A demonstração de que se podem fazer jardins, de baixo custo e com poucos gastos de água, acrescentou, foi feita na Vila Romana de Milreu, do século II. Uma equipa da Ualg, no ano passado, criou nesse espaço histórico um jardim com plantas do tipo mediterrânico: “Só investimos num sistema de rega gota a gota e das 20 espécies que foram plantadas aguentaram-se 15 — o que não é nada mau, porque não tiveram qualquer manutenção”, comentou. Trata-se de plantas, disse, que já eram usadas no império romano, a maioria para fins medicinais.
Por outro lado, nos campos de golfe, defendeu a investigadora ao PÚBLICO, “só a parte de onde se atira a bola é que tem de estar verde, o restante espaço poderia estar seco no Verão”. O contraste das cores, preconiza, “poderia fazer um equilíbrio interessante”. E para que não haja dúvidas sobre os seus conhecimentos práticos, acrescentou que jogava golfe.
O autarca de São Brás de Alportel é um dos que alinham na alteração do paradigma da concepção dos jardins, públicos e privados, mas tem ambições mais alargadas que exigem investimento da administração central. “Temos um anteprojecto para construir uma barragem, no Monte da Ribeira (ribeira do Alportel)”. A utilidade da construção dessa infra-estrutura, na zona central da região, justifica-se pelos benefícios directos às populações e “permitiria corrigir as cheias do rio Gilão e evitar as inundações em Tavira”, defendeu.
Mas há também o outro lado da moeda, porque, depois da seca, adverte, podem vir chuvas torrenciais. Nesse sentido, o presidente da Câmara de Albufeira, Carlos Silva e Sousa, PSD, elegeu como obra prioritária deste novo mandato a construção de um grande túnel por baixo da cidade para desviar o caudal da ribeira de Albufeira em relação ao mar. O objectivo é que não se venha a repetir uma calamidade como aconteceu na cheia do dia 1 de Novembro de 2015, quando as ruas se transformaram em rios e a água chegou ao tecto das casas.