"Verificámos com tristeza que faltou socorro"
Falhou morfina nos centros de saúde e socorro a pessoas em casas isoladas. INEM não contribuiu para o estudo de Xavier Viegas sobre o que aconteceu no incêndio de Pedrógão.
Xavier Viegas conta casos de pessoas que poderiam ter sido salvas ou pelo menos visto o seu sofrimento apaziguado. O perito varreu o território com a Polícia Judiciária logo no dia a seguir ao incêndio e concluiu que, além das falhas de combate, houve várias falhas no socorro prestado às populações.
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Xavier Viegas conta casos de pessoas que poderiam ter sido salvas ou pelo menos visto o seu sofrimento apaziguado. O perito varreu o território com a Polícia Judiciária logo no dia a seguir ao incêndio e concluiu que, além das falhas de combate, houve várias falhas no socorro prestado às populações.
No relatório diz que não foi feita uma busca e salvamento em larga escala e que se tivesse existido poderiam ter sido evitadas algumas mortes. O que quer dizer com isto?
Relatámos cada um dos acidentes das vítimas e casos de pessoas que sobreviveram, que passaram pelas mesmas circunstâncias daqueles que morreram. Parece-nos importante conhecer as decisões correctas ou menos correctas, e às vezes ditadas até por factos completamente fortuitos.
Diz que o socorro não foi planeado e que se poderiam ter evitado vítimas. Quer precisar?
Nós verificámos com tristeza que faltou socorro.
O socorro falhou?
Faltou algum socorro. E depois houve algum socorro que foi feito por vezes até de mote próprio. No nosso relatório referimos três casos de pessoas que, no nosso entender, foram heróis. São pessoas que salvaram feridos, que levaram queimados, que os retiraram do fogo e os levaram para um sítio seguro. Tanto quanto sei, todas essas pessoas estão fora de perigo.
São heróis desconhecidos?
Um deles é o adjunto Sérgio Lourenço, dos bombeiros de Pedrógão, outro é o comandante Pedro Nunes e outro é um civil, médico, Nuno Moisés. Haverá mais. O Sérgio [Lourenço] meteu-se num carro e salvou três pessoas que tinham tido um acidente. Meteu-as no carro e levou-as para o hospital, no meio de várias peripécias. Depois, voltou à procura de mais e salvou mais duas ou três pessoas. É importante que o país saiba, porque no meio desta tragédia toda houve muitas situações de grande altruísmo e de heroísmo. Tristemente sabemos de outros casos em que as pessoas estariam feridas, não estavam queimadas, nem carbonizadas, mas estavam vivas e que não foram socorridas a tempo.
Porquê?
O caso mais dramático, de uma morte que se poderia ter evitado, é o de uma senhora cega que estava em casa. Teve dificuldade em perceber o que se passava à volta dela. A casa dela arde, não no dia 17, mas no dia 18 de madrugada. A casa desaba e ela morre. Um outro casal morreu dentro de casa. Morreram intoxicados. A casa ardeu uma parte, mas onde eles estavam não estava queimado. O filho desse casal foi lá às 9h30 e encontrou os pais mortos. Se houvesse socorro, uma comunidade que reconhecesse que estavam ali aquelas pessoas, possivelmente poderiam ter ido lá resgatá-los.
Por que acha que não aconteceu essa operação de socorro de larga escala, depois das 22h? O comando não estava preparado? Houve mais mortes que poderiam ser evitadas?
Há o caso do bombeiro que morreu mais tarde. Nesse caso, se tivesse socorro antes, admito que poderia ter-se salvado ou minimizado sofrimento. Tive oportunidade de falar com os sobreviventes e disseram-me que estavam com um grande sofrimento, com dores horríveis e não havia morfina em Castanheira de Pêra para atenuar as dores. Tiveram o acidente às 20h, 20h15, só receberam uma injecção de morfina às 4h da manhã.
Houve, aliás, um caso de um bombeiro que andou várias horas sem chegar ao hospital...
Não conseguimos apurar isso em detalhe. Fizemos perguntas ao hospital de Coimbra, ao INEM. De referir que o INEM nunca nos respondeu sobre as perguntas no geral que fizemos. Tentámos perceber como tinha sido o socorro, como tinha sido a distribuição dos feridos, como as pessoas tinham sido levadas daqui para ali. Para o caso dos bombeiros quisemos apurar mais em detalhe, porque soubemos que houve algum desconcerto no transporte das pessoas.
O INEM não colaborou consigo?
Não. Tínhamos recebido um ofício a dizer que estavam a analisar as circunstâncias em que nos poderiam responder. Curiosamente, só no dia a seguir à divulgação do relatório recebi outro ofício a dizer que estavam disponíveis.
Já morreram mais de 100 pessoas em quatro meses. Por que morreram tantas pessoas? Estamos a falar de negligência?
É difícil perceber, mas por outro lado também temos de perceber que um incêndio pode fazer isto quando se propaga — e estamos a falar de dois episódios com condições catastróficas. O dia 15 ultrapassou tudo aquilo que podemos imaginar. Acompanhei os incêndios de 2003 e publiquei um livro sobre os incêndios e lembro-me de escrever que, às vezes, tinha pesadelos e pensava ver o país todo a arder. Imagine o mapa do país e uma frente a varrer o mapa. Foi essa a sensação que tive em 2003, e isso foi o que aconteceu no dia 15 de Outubro.
Mas não aceita a inevitabilidade dessas mortes?
Não aceito. Não aceito. O que eu acho é que, apesar de estes incêndios serem graves, fala-se de aprender lições, mas onde está essa aprendizagem?