Nem tudo o que vem à rede se come

Um almoço num barco em Portimão para chamar a atenção para as quantidades de peixe que todos os dias deitamos fora para o mar. A iniciativa Mar Adentro e o chef João Oliveira quiseram pôr-nos a pensar na sustentabilidade do pescado.

Foto

Às vezes, quase metade do peixe que vem à rede num dos barcos de Miguel Cunha tem que ser devolvido ao mar, muito dele já morto ou sem hipóteses de sobrevivência. Quem ouve o que conta este proprietário de uma frota de barcos de pesca por arrasto no Algarve indigna-se. Metade? E porquê?

Estamos precisamente na zona do arrastão por onde entra a rede cheia de peixe e onde este é escolhido e separado — o que fica e o que volta ao mar. No tapete à nossa frente estão vários exemplos de espécies que têm que ser rejeitadas, parte delas porque são sujeitas a quota e ultrapassam a percentagem permitida para cada barco e outras simplesmente porque não têm valor comercial. Ou seja, ninguém as compra e ninguém as come.

Mas nada é tão simples como parece à primeira vista. Miguel Cunha explica que a nova política europeia das pescas prevê, numa medida aprovada em 2013, o fim das rejeições de peixes no mar até 2019. Todo o peixe que for parar às redes deve ser trazido para terra — uma medida criticada pelos pescadores portugueses, que argumentam que são obrigados a transportar nos barcos peixe que não conseguem vender.

“Não faz sentido, com a fome que há no mundo, estar a deitar fora proteína”, reconhece o armador. “Mas os mercados não estão preparados para absorver certas quantidades de certas espécies. Proibir as rejeições vai criar um problema ambiental, que é transferido para terra.” A medida, diz, só vai beneficiar “as fábricas de farinha de peixe do Norte da Europa, que passam a ter mais matéria-prima barata”.

Foto
Miguel Manso

O que fazer, então? Uma das soluções é promover o consumo de espécies habitualmente pouco valorizadas. E é precisamente por isso que estamos aqui, no interior deste arrastão, em Portimão, no segundo dia do Mar Adentro, uma iniciativa lançada pelo restaurante Vista do Bela Vista Hotel, o chef João Oliveira, o Sangue na Guelra, e Pedro Bastos, da empresa de comércio de peixe Nutrifresco.

Esta é já a terceira edição do Mar Adentro e se as duas primeiras se centraram no valor da pesca artesanal, esta deu mais um passo no debate sobre a sustentabilidade dos recursos marítimos ao trazer a pesca por arrasto para a conversa. Esperava-nos dali a pouco um almoço preparado noutro barco, mas antes os organizadores quiseram fazer a visita ao arrastão para explicar como é que funciona este tipo de pesca.

“Por mais que eu gostasse de comprar apenas peixe capturado por pirogas ou barco à vela, com o aumento do consumo, isso não é possível”, afirma Pedro Bastos. “Temos que encarar a pesca de arrasto como parte da nossa capacidade de capturar recursos marinhos. Se não fossem barcos como este, havia dias em que os chefs queriam um peixe-galo, por exemplo, e eu não conseguia encontrá-lo.”

Para ajudar ao debate foi convidada também Rita Sá, da organização ambientalista WWF, que tem um projecto, o Fish Forward, para promover o consumo sustentável de pescado, que passa por comermos as tais espécies que normalmente rejeitamos, diversificando as escolhas, garantirmos que o peixe que comemos está acima do tamanho mínimo legal e pedirmos informação sobre o local de captura e a arte de pesca usada. Miguel Cunha refere o que considera ser um bom exemplo: a campanha que a Doca Pesca fez para o consumo de cavala, um peixe que há uns anos não era valorizado e que passou a ser muito mais consumido.

Foto
Chef João Oliveira, do Vista Miguel Manso

Rita Sá concorda, mas deixa um alerta: “Neste momento, a cavala não tem um plano de gestão, não há regras nem limites, não sabemos como está a população. É um peixe que está a ser usado para alimentar os atuns do Mediterrâneo, são precisos dez quilos de cavala para obter um quilo de atum. Ou seja, estamos a usar proteína que poderíamos consumir para alimentar o atum.”

Outro bom exemplo que Miguel cita é o do carapau negrão, valorizado através de um projecto com a cadeia de supermercados Pingo Doce. “Há dez anos ninguém o comia, era todo deitado fora. Fizemos uma parceria com o Pingo Doce e conseguiu-se criar um mercado para ele.”

O que o armador não consegue entender é que a União Europeia “pague um subsídio às organizações de produtores para estabelecer um preço abaixo do qual o peixe não vai para o mercado”. E conta: “Perguntei por que é que estamos a pagar para retirar do mercado e destruir. Porque é que não usamos esse valor para congelar o pescado e enviá-lo para os países onde há fome? Responderam-me que isso vai colidir com os canais comerciais que existem e que a Organização Mundial do Comércio não permite. E assim continuamos a mandar fora proteína de alto valor.”

Foto
Peixe que é rejeitado Miguel Manso

A solução? Como quer demonstrar o Mar Adentro, a solução passa por valorizarmos as tais espécies rejeitadas. E calha bem, porque a conversa no interior do arrastão está muito interessante mas já começamos a ter fome. É tempo de mudarmos de barco e ver o que os chefs prepararam.

Na véspera, no Vista, João Oliveira convidou Vítor Matos, do Antiqvvum (Porto) e Luís Gaspar, da Sala de Corte (Lisboa), para fazerem juntos o jantar. Para o almoço no barco desafiou Tiago Bonito, da Casa da Calçada (Amarante) e Vasco Coelho Santos, do Euskalduna (Porto). Foram de Tiago Bonito os três primeiros pratos: lírio curado e marinado, com amêndoas verdes, lima kaffir (combava), puré de couve-flor e rabanetes; judeu confitado com espuma de gaspacho, milho frito e alho negro fermentado; e peixe-porco com puré de raiz de salsa, toucinho e crosta de pão com alcaparras.

Pedro Bastos vai dando as explicações. A ideia inicial de servir peixe que é geralmente rejeitado não se concretizou devido à avaria de um dos barcos, por isso foram escolhidas outras espécies. “O lírio, por causa da sazonalidade e da sustentabilidade — 95% é capturado nos Açores nesta altura, com pesca à linha, porque a de arrasto não é permitida nas águas dos Açores.”

Foto
Um dos pratos do chef Vasco Coelho Santos, do Euskalduna Miguel Manso

O judeu é um dos tunídeos pequenos que passam pela costa portuguesa. “Temos quatro grandes tunídeos, dos quais o mais consumido é o atum-rabilho”, diz Pedro. “Entre os pequenos temos o sarrajão, o judeu, a merma e o gaiado. A ideia não é deixarmos de comer atum-rabilho mas reduzir o seu consumo e substituí-lo por tunídeos mais pequenos, como o sarrajão, que está agora a passar pela nossa costa.”

Por fim, com o peixe-porco pretende-se “quebrar o tabu de que peixe barato é mau” — trata-se de uma espécie é considerada o “primo pobre do peixe-galo” mas que se alimenta de ouriços-do-mar e que “existe muito na nossa costa”.

A Vasco Coelho Santos coube a lula gigante dos Açores (“gigante é exagero”, notou Pedro Bastos, explicando que são animais com cerca de três quilos), que o chef apresentou crua, num caldo à base de caril filtrado, com funcho laminado e emulsão dos tentáculos com nata queimada e leite reduzido.

Foto
Miguel Manso

Veio depois a liça robalada — “que é parecida com o robalo, mas que os pescadores preferem porque está sempre gorda” — grelhada, com escabeche de cebola e um molho de pés de porco, delicado e sedoso, a dar ao prato a gordura necessária para o equilibrar. E, por fim, ainda de Vasco, a macaca, uma “variante do linguado”, com boletos grelhados e, no meio do peixe, um miso de cevada a imitar ovas.

Por fim, o anfitrião, João Oliveira, apresentou safio, um peixe difícil de trabalhar pela quantidade de espinhas, cozinhado a baixa temperatura e colocado no prato a imitar a forma de uma vieira, com um caldo de dashi feito com a cabeça do peixe, cogumelos trompetas da morte e malagueta. Antes disso, trouxe às mesas o elegante caranguejo real, capturado nos Açores (e que Pedro Bastos comprara pela primeira vez), num suporte crocante de massa de algas, com pezinhos de coentrada. O almoço foi todo acompanhado por vinhos de Dirk Niepoort e por chá verde frio mizudashi, dos Chá Camélia.

No final, ficou provado que se consegue fazer uma refeição de alta gastronomia com peixes a que muitas vezes não damos a importância que merecem. E ficaram as palavras do livrinho do WWF distribuído aos presentes: “A sobrepesca tornou-se a segunda maior ameaça para os oceanos depois das alterações climáticas, e brevemente poderá não haver mais peixe para pescar, produzir ou comer.” Será, por isso, sensato começarmos a olhar com mais atenção para as toneladas que todos os dias deitamos fora para o mar.