Floresta: do que não pode ficar outra vez descuidado
A reforma da floresta arrisca deixar de fora um pilar essencial no combate aos problemas de que o sector florestal enferma.
A gravidade das consequências dos incêndios florestais deste ano poderá estar a gerar duas mudanças sociais muito importantes. Uma delas é estes incêndios começarem a ser percepcionados como sendo um risco social, ou seja, um risco que não afecta apenas alguns indivíduos, ou grupos sociais, mas sim a sociedade como um todo, exigindo, por isso, a organização da acção colectiva, voluntária e solidária de todos os seus membros. Escrevi sobre isto neste jornal em 31 de Agosto de 2005 (“Fogos florestais, um risco social”).
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A gravidade das consequências dos incêndios florestais deste ano poderá estar a gerar duas mudanças sociais muito importantes. Uma delas é estes incêndios começarem a ser percepcionados como sendo um risco social, ou seja, um risco que não afecta apenas alguns indivíduos, ou grupos sociais, mas sim a sociedade como um todo, exigindo, por isso, a organização da acção colectiva, voluntária e solidária de todos os seus membros. Escrevi sobre isto neste jornal em 31 de Agosto de 2005 (“Fogos florestais, um risco social”).
A outra mudança social relevante que poderá vir a acontecer é o Governo reformar o Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios (SNDFCI), integrando a prevenção e o combate e incorporando no sistema o conhecimento científico disponível nesta área, respondendo, assim, à forte pressão a que está sujeito para actuar neste sentido.
Pelo caminho que o debate público sobre estes assuntos está a levar, é provável que a “reforma da floresta” se fique essencialmente pelas mudanças atrás referidas. Se isto vier a acontecer será uma reforma à qual irá faltar um pilar que deve ser essencial no combate aos problemas de que o sector florestal enferma e dos quais os incêndios são um epifenómeno. Esse pilar é o desenvolvimento de um sistema de co-financiamento, pelo Estado, da produção de um “bem público” de que a produção florestal em Portugal muito carece que é a organização de formas de gestão florestal agrupadas.
Num país onde o Estado é dono de cerca de 3% da área florestal, sendo o resto área comunitária (5%) e privada (92%), e estando muito desta última bastante fragmentada, sem essas formas de organização dificilmente será possível melhorar a gestão florestal e, consequentemente, reduzir o risco de incêndio.
O SNDFCI até pode vir a ficar muito bem organizado e até poderá vir a ter uma boa incorporação de conhecimento científico, mas, se os produtores florestais não estiverem organizados para poderem melhorar a gestão dos seus espaços florestais, vai continuar a haver um elevado risco de incêndio.
Alguns poderão dizer que não é isto que está a acontecer porque se vai cuidar do cadastro, dos terrenos “abandonados” e dos incentivos para novas entidades de gestão florestal. Na minha opinião, no debate público sobre a floresta, mesma nas suas versões “melhoradas” que, felizmente, vão começando a acontecer, continua a não haver uma boa discussão sobre esse pilar que está há muito a faltar na nossa política florestal. Falta um bom confronto de ideias entre cinco estratégias que andam por aí relativamente a este problema, do qual possa emergir uma política vigorosa para o combater.
Vamos, então, a essas estratégias. Durante muito tempo foi muito influente e ainda continua a ter muita audição a estratégia “administrativista” que advoga o seguinte: como os produtores florestais são “absentistas”, então deve ser a Administração Pública a assumir a gestão das suas florestas, ou até mesmo a sua propriedade. Duas versões desta estratégia que têm vindo a ganhar corpo nos últimos anos são as seguintes: a “estratégia municipalista”, que advoga que as entidades que devem assumir a gestão, ou a propriedade dos “absentistas”, são os municípios; outra versão é a dos que advogam a restauração dos Serviços Florestais, em moldes semelhantes aos que teve quando estiveram no seu auge.
Outro grupo de estratégias é o das que não recorrem à intervenção directa do Estado, como no caso das atrás referidas, mas sim a incentivos positivos e negativos instituídos pelo Estado, contando, depois, principalmente com os mecanismos do mercado para que a concentração da gestão e da propriedade florestal aconteçam. Incluem-se aqui os que dão prioridade a incentivos positivos de natureza fiscal e financeira a atribuir a novos investidores que queiram arrendar, ou comprar terrenos, aos actuais proprietários florestais “absentistas”, ou minifundiários. Também se inclui aqui a posição dos que advogam uma fiscalidade penalizadora do “abandono“ dos terrenos florestais.
Não havendo aqui espaço para analisar detalhadamente cada uma destas estratégias, ficam só duas notas relativamente às suas insuficiências para resolver o problema do “abandono” dos terrenos florestais.
Quanto ao primeiro grupo atrás referido, será que alguém acha realista virmos um dia a ter em Portugal uma Administração Pública Central e Local e um Orçamento do Estado com capacidade para tirar devidamente do “abandono” toda a área florestal que se diz estar nesta situação?
O segundo grupo de estratégias atrás referido, que repousa muito em mecanismos de mercado para resolver o problema do “abandono” de terrenos florestais, esquece uma característica elementar deste tipo de organização da actividade económica: o mercado inclui as empresas que são competitivas e os consumidores que têm meios para comprarem o que desejam, mas exclui (ou deixa ao abandono) as restantes empresas e consumidores.
A segunda nota é que estas quatro estratégias esquecem o ponto por onde este artigo começou, a saber: o nosso sector florestal está confrontado com riscos sociais que só podem ser devidamente combatidos com a organização da acção colectiva, voluntária e solidária dos cidadãos, começando, obviamente, pelos produtores florestais. Ora a intervenção directa do Estado não assegura este tipo de organização e os mecanismos de mercado também não, sem prejuízo de haver algum papel para o Estado e para o mercado neste processo, mas não como agentes centrais do mesmo.
O que fazer, então? O que fazer, em primeiro lugar, é olhar para a realidade e ver que, mesmo com incentivos públicos muito deficientes, desde os anos 90, emergiu um conjunto de Organizações de Produtores Florestais em todas as regiões do país, cujo número total é de 135, a que se devem juntar, também, os baldios geridos pelos seus compartes. Também, mesmo com incentivos públicos muito deficientes, essas organizações asseguram a existência de cerca de 200 brigadas de sapadores florestais e criaram, em poucos anos, Zonas de Intervenção Florestal correspondentes a um total de 930.000 ha.
Assim sendo, a organização da acção colectiva dos produtores florestais privados não é impossível e o pontapé de saída está dado. O que é preciso fazer, agora, é corrigir o que está mal nos incentivos financeiros públicos de que estas organizações precisam e a que têm direito por estarem a produzir um “bem público” (a organização colectiva dos produtores florestais privados) que não beneficia apenas os seus associados, mas também a sociedade como um todo.
A melhoria desses incentivos deve incluir o seu enquadramento em “contratos-programa” de médio prazo, devidamente monitorizados e avaliados, onde haja lugar para o desenvolvimento da capacidade de planeamento estratégico destas organizações e para a incorporação de conhecimento científico.
Infelizmente, em todos os debates que por aí vão sobre as florestas, mesmo os “melhorados”, quase ninguém fala disto, mas sem isto a “reforma da floresta” vai ficar sem um pilar essencial e, por isso, vai cair, de novo, na ineficácia.