O território íntimo de Kelela até ao infinito

A cantora americana alia a vulnerabilidade vocal à tecnicidade tecnológica para a feitura de admiráveis canções expansivas.

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Mais uma cantora de grandes recursos que recorre ao serviço de vários alquimistas do som: Kelela

Estava-se mesmo a ver. Depois de se ouvir a mixtape Cut 4 Me (2013), o EP Hallucinogen (2014), ou de a vermos em palco na sua estreia em Portugal (ZDB em 2014), era quase certo que Kelela não iria desiludir quando editasse o seu primeiro álbum de estúdio.

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Estava-se mesmo a ver. Depois de se ouvir a mixtape Cut 4 Me (2013), o EP Hallucinogen (2014), ou de a vermos em palco na sua estreia em Portugal (ZDB em 2014), era quase certo que Kelela não iria desiludir quando editasse o seu primeiro álbum de estúdio.

E aí está, Take Me Apart, mais uma das histórias felizes deste ano (a juntar aos álbuns de Arca, Moses Sumney ou Sevdaliza) em como arquitectar um som digital alienígena com uma voz a pairar que, apesar da desordem sonora à sua volta, consegue ser clara, envolvente e frágil, emanando harmonia. 

É uma história antiga. De Björk a FKA Twigs os casos abundam. Uma cantora de grandes recursos recorre ao serviço de vários alquimistas do som (Arca, Kwes, Jam City, Ariel Rechtshaid, Romy Madley Croft dos The xx, Mocky ou Asma Maroof dos Nguzunguzu), a maior parte deles provindos das electrónicas abstractas ou das músicas de dança e o resultado final acaba por se aproximar da estrutura de canção pop seguindo os parâmetros definidos pela cantora americana de 34 anos.

E é assim que a partir dos fragmentos de diversas linguagens urbanas (R&B, dubstep, trap, hip-hop, drum & bass) uma voz se ergue envolvida num som atmosférico futurista capaz de criar uma nova linguagem emocional. As letras são ainda sobre relações e romance, mas sempre a partir de um ponto de vista dissonante, com a desintegração, a solidão, os desejos, a proximidade e a distância, os medos mas também a excitação com o que virá no dia seguinte ao fim, sempre à espreita.

Isso acaba por ser familiar. Da mesma forma que o é a sua interpretação humanizada, numa voz sinuosa de inflexões jazzísticas. Mas o todo acaba por ser renovado, com a maior parte das canções a expor uma matriz de sons sintéticos e de metamorfoses electrónicas, com baixos subsónicos, síncopes rítmicas abstractas e espaço, junção de virtualidade, fisicalidade e realidade.

A canção inicial, Frontline, com produção do inglês Jam City, é um bom exemplo, começando de forma etérea, para desaguar num ritmo quebrado. Em Turn to dust, a sua forma de cantar torna-se sussurrante envolvida pelas orquestrações mínimas proporcionadas por Arca. São aliás os temas que apostam no ínfimo de movimentos que mais seduzem. É o caso de Enough, outro delírio atmosférico com o dedo de Arca, com a voz da cantora americana parecendo vogar por um planeta distante, ou num espectro muito diferente, a solene balada Bluff, pouco mais de um minuto para piano, ruído electrónico e voz, e mil emoções indizíveis à solta.

As canções são sempre intricadas, mesmo nas suas versões mais óbvias como no single LMK, mas o que sobressai quase sempre é essa mistura entre vulnerabilidade e tecnicidade. É um álbum focado no mundo interior de Kelela, ao nível das letras e da sua performance vocal, mas é como se a música expandisse esse território intimo até ao infinito. Magnífico.