Sócrates terá usado ex-ministros em crimes de corrupção no TGV

Ministério Público sustenta que Sócrates instrumentalizou quatro membros dos seus governos levando-os a cometer ilícitos. Mas sublinha que não teriam consciência de que o estavam a fazer.

Foto
LUSA/JOSÉ COELHO

O Ministério Público acredita que o antigo primeiro-ministro José Sócrates “instrumentalizou” vários membros dos dois governos que liderou para favorecer tanto o consórcio a quem foi adjudicado o primeiro troço do TGV, que integrava uma empresa do Grupo Lena, como as empresas do universo do Grupo Espírito Santo. Estes alegados favorecimentos valeram a Sócrates duas das três acusações pelo crime de corrupção passiva.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O Ministério Público acredita que o antigo primeiro-ministro José Sócrates “instrumentalizou” vários membros dos dois governos que liderou para favorecer tanto o consórcio a quem foi adjudicado o primeiro troço do TGV, que integrava uma empresa do Grupo Lena, como as empresas do universo do Grupo Espírito Santo. Estes alegados favorecimentos valeram a Sócrates duas das três acusações pelo crime de corrupção passiva.

No rol de antigos governantes que os procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) acreditam terem cometido ilícitos administrativos estão dois antigos ministros das Obras Públicas, Transportes e Comunicações: Mário Lino e António Mendonça. Também a actual ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, que na altura dos factos era secretária de Estado dos Transportes, e o seu sucessor Carlos Fonseca terão colaborado involuntariamente num crime de corrupção que a acusação imputa a Sócrates.

Isso mesmo é dito pelos procuradores nos “despachos prévios” que integram as 4083 páginas do documento que conclui a fase de investigação da Operação Marquês. Antes de precisarem que suspeitas arquivam e que crimes imputam a 28 dos arguidos do processo, os magistrados justificam porque não acusam alguns dos políticos envolvidos no caso. Não é comum este tipo de explicações fazerem parte do despacho final de um inquérito, que habitualmente se concentra nos factos arquivados e nos que suportam a acusação.

Desrespeitaram o interesse público

Numa parte intitulada “Da não imputação da prática de crimes a outros decisores políticos intervenientes nos factos”, o Ministério Público sustenta que existem indícios de que aqueles governantes cometeram ilícitos administrativos, violando normas e princípios que deveriam nortear a sua actuação. E com isso desrespeitaram aquele que deveria ser o objectivo último da sua acção: o interesse público. No entanto, o Ministério Público admite que os quatro antigos membros daqueles governos socialistas violaram a lei porque Sócrates os convenceu de que o incumprimento dessas normas se justificava face ao mesmo interesse público.

Os procuradores sublinham que os antigos governantes actuaram sem que “tivessem conhecimento do acordo estabelecido entre o então primeiro-ministro e ora arguido José Sócrates e Joaquim Barroca e Ricardo Salgado”, os seus alegados corruptores.

“Não se podendo subsumir a respectiva conduta, em termos de ilicitude subjectiva, a um qualquer acto de comparticipação na actividade ilícita levada a cabo pelo arguido José Sócrates, designadamente a título de co-autoria ou cumplicidade”, lê-se no documento consultado pelo PÚBLICO no DCIAP, em Lisboa. 

O Ministério Público sustenta que os antigos governantes ajudaram o ex-primeiro-ministro a cometer crimes de corrupção, desconhecendo que a motivação deste era o recebimento ilícito de vantagens. Esse desconhecimento, entendem os procuradores, faz com que não esteja preenchido um dos requisitos necessários para os antigos governantes serem acusados - a consciência de que estavam a cometer crimes.

Os procuradores continuam dizendo que se podia questionar se esses comportamentos ilícitos poderiam constituir um crime de abuso de poder. “Também quanto a tal tipo de ilícito penal e ante a prova colhida em sede de inquérito, há que concluir pela não indiciação do elemento do tipo de ilícito subjectivo, porquanto se indicia que os agentes [Mário Lino, António Mendonça, Ana Paula Vitorino e Carlos Fonseca] mercê da actividade de direcção do arguido José Sócrates actuaram na convicção interior de que estariam a adoptar soluções de natureza político-administrativa que, no contexto concreto de actuação, melhor prosseguiam o interesse público”, escrevem os magistrados.

Mário Lino desmente acusações

Contactado pelo PÚBLICO, o antigo ministro Mário Lino diz que a única parte que leu do despacho de acusação, a referente ao TGV, “não corresponde à verdade”, uma vez que Sócrates nunca se imiscuiu no concurso da Alta Velocidade. “Nunca deu sugestões nenhumas, nunca inquiriu ninguém sobre quem tinha concorrido”, assegura. “A acusação diz que tanto eu como a minha secretária de Estado Ana Paula Vitorino o informávamos do que se estava a passar, mas ele só queria saber se o processo estava a andar ou não”.

A tese do Ministério Público é, porém, um pouco mais intrincada: diz que o antigo primeiro-ministro sabia perfeitamente que o consórcio Elos, de que fazia parte o Grupo Lena, estava em vantagem no concurso, uma vez que estava a pagar cinco mil euros mensais a um director da empresa pública Rave, responsável pela preparação do projecto da Alta Velocidade, para que este lhe passasse informação privilegiada.

Razão pela qual não precisava de exercer abertamente pressões a favor deste agrupamento de empresas, tendo apenas de assegurar que o processo não emperrava antes de a concessão do TGV lhe ser entregue por 40 anos. Por isso, “justificou, ante os indivíduos por si instrumentalizados, a adopção de opções procedimentais ilegais com a importância estratégico-política e económica do projecto para o país, bem como a necessidade de aproveitar atempadamente linhas de financiamento comunitárias”, descreve o despacho de acusação da Operação Marquês.

Confrontado com os delitos que o Ministério Público diz ter cometido inadvertidamente – e que não constam daquele despacho -, por ter sido alegadamente enganado por José Sócrates, Mário Lino interroga-se: “Qual foi a regra que não cumpri? O ilícito que cometi?”

A acusação não o detalha, aludindo, porém, à irregularidade de vários dos procedimentos que levaram à adjudicação da Alta Velocidade ao Elos, feita já Sócrates ia no seu segundo mandato como chefe do Governo e António Mendonça tinha ocupado o lugar de Mário Lino.

Sócrates reuniu-se com presidente do júri

O facto de o ex-primeiro-ministro se ter reunido pelo menos uma vez com o presidente do júri do concurso, júri que acabou por aceitar que o consórcio introduzisse no contrato cláusulas penalizadoras para o Estado, depois de se ter oposto a elas por mais de uma vez, é para os procuradores indício suficiente de que algo de menos claro se passou nesse encontro.

“Fazendo-se acompanhar do presidente do júri, Mário Lino reuniu com o primeiro-ministro entre 15 e 26 de Outubro de 2009, e pondo-o a par do procedimento concursal, nomeadamente do resultado das negociações”, relata o Ministério Público.

Mais tarde, já com António Mendonça à frente da pasta das Obras Públicas, “fez reafirmar a necessidade de o júri produzir um relatório que contivesse fundamento suficiente para suportar uma decisão de adjudicação, recorrendo aos pareceres e consultas necessários para tal”.

Contactada pelo PÚBLICO, a actual ministra do Mar não reagiu em tempo útil às palavras do Ministério Público. Já relativamente a Carlos Fonseca, apesar de várias tentativas, o PÚBLICO não conseguiu localizar o antigo secretário de Estado. O PÚBLICO tentou igualmente, sem sucesso, falar com António Mendonça.

Nos “despachos prévios” existe um outro capítulo relativo ao envolvimento de outras pessoas. Nesta lista de 11 pessoas surge à cabeça a mãe do antigo primeiro-ministro, seguida pelo antigo ministro Silva Pereira e pela sua mulher. No fim surge o professor universitário que ajudou Sócrates na tese que entregou na Sorbonne, em Paris, e o blogger que escrevia textos de opinião na Net a apoiar as posições do antigo primeiro-ministro. 

Este grupo de pessoas também escaparam à acusação apesar de terem participado “em esquemas que permitam o favorecimento de grupos societários e/ou ocultação da origem dos fundos obtidos de forma ilícita pelo arguido José Sócrates”, nas palavras no Ministério Público. “Todavia, tal intervenção assume carácter parcelar e fragmentado que não permite concluir, com a necessária segurança e de modo a que se possa afirmar existirem indícios suficientes, que fossem conhecedores dos reais contornos dos referidos esquemas e das intenções subjacentes”, justificam os procuradores.