Doclisboa, dez dias de aventuras em rally paper
A 15.ª edição do festival começa esta quinta-feira e não abranda até dia 29, com um programa riquíssimo que vai tornar difícil a escolha entre o cinema do Quebeque, Grace Jones, a selva de Calais e Al Gore.
A abertura oficial tem lugar com Ramiro, mas quando o novo filme de Manuel Mozos der esta noite início ao Doclisboa 2017, na Culturgest (21h30), já o festival estará a carburar em pleno, e em múltiplas direcções: na Cinemateca, com o arranque da retrospectiva dedicada ao cinema do Quebeque (em cinco sessões, a partir das 15h30), no Museu Colecção Berardo, com a exposição de Sharon Lockhart My Little Loves (até 14 de Janeiro) integrada na secção Passagens; no Cinema Ideal, com os novos filmes de Laura Poitras (Risk, sobre Julian Assange, 20h) e Claude Lanzmann (Napalm, sobre o interlúdio romântico que o cineasta viveu nos anos 1950 durante uma visita à Coreia do Norte, 22h); ou no São Jorge, com Ex Libris, o filme de Frederick Wiseman sobre a New York Public Library (22h). (Todos eles voltam a ser exibidos mais à frente, porque para dia de abertura é obra.)
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A abertura oficial tem lugar com Ramiro, mas quando o novo filme de Manuel Mozos der esta noite início ao Doclisboa 2017, na Culturgest (21h30), já o festival estará a carburar em pleno, e em múltiplas direcções: na Cinemateca, com o arranque da retrospectiva dedicada ao cinema do Quebeque (em cinco sessões, a partir das 15h30), no Museu Colecção Berardo, com a exposição de Sharon Lockhart My Little Loves (até 14 de Janeiro) integrada na secção Passagens; no Cinema Ideal, com os novos filmes de Laura Poitras (Risk, sobre Julian Assange, 20h) e Claude Lanzmann (Napalm, sobre o interlúdio romântico que o cineasta viveu nos anos 1950 durante uma visita à Coreia do Norte, 22h); ou no São Jorge, com Ex Libris, o filme de Frederick Wiseman sobre a New York Public Library (22h). (Todos eles voltam a ser exibidos mais à frente, porque para dia de abertura é obra.)
O grosso do programa só arranca verdadeiramente na sexta-feira: a secção de documentários sobre artes Heartbeat (que trará filmes sobre Bill Frisell, Marianne Faithfull, Cary Grant, Colette Magny ou Joseph Beuys) dá o pontapé de saída com o filme sobre Grace Jones, Bloodlight and Bami (sessão única no São Jorge, às 21h30); a Culturgest recebe, às 20h, a abertura da retrospectiva dedicada à realizadora checa Vera Chytilova. E dá-se também o pontapé de saída para as secções competitivas: a Competição Portuguesa com o curioso “programa duplo” que junta o lúdico Dom Fradique, de Nathalie Mansoux, ao devastador Notas de Campo, de Catarina Botelho (São Jorge, 18h45; repete dia 25 à mesma hora), e a Competição Internacional com o comovente retrato de cinco idosos a chegarem ao fim da vida, End of Life (Culturgest, 21h30; repete dia 26 às 16h30 no São Jorge), que John Bruce e Pawel Wojtasik rodaram ao longo de cinco anos.
Confirmando como o Doc é um festival de “vasos comunicantes” em que os filmes ressoam e ecoam entre si, End of Life contrasta e comunica com o Leopardo de Ouro de Locarno 2017, Mrs. Fang, do chinês Wang Bing, apresentado fora de concurso (Ideal, dia 22, às 22h; Culturgest, dia 28, às 19h15). Onde Bruce e Wojtasik acompanham com pudor e delicadeza os últimos meses de pessoas que tiveram a possibilidade de ter uma palavra a dizer sobre o fim da sua vida, Wang filma com igual pudor, mas com a sua habitual franqueza austera, os últimos dias de uma matriarca rural chinesa com uma forma de Alzheimer, prisioneira da sua cama, por entre uma família que procura sobreviver o melhor possível.
Escolher, eis a questão
O problema, como sempre com um festival tão rico como o Doc, vai estar na escolha. Quem arriscar acompanhar as retrospectivas não vai conseguir ter tempo para a restante programação; ficar pela Culturgest implica concentrar-se nos títulos da competição e nas múltiplas “aventuras” da secção Riscos (que vão incluir o redescoberto Grandeur et décadence d’un petit commerce de cinéma, de Jean-Luc Godard, a reavaliação de Gummo, de Harmony Korine, Altas Cidades de Ossadas, de João Salaviza, ou o espantoso Did You Wonder who Fired the Gun? de Travis Wilkerson). Mas é também na Culturgest que vai ter lugar a projecção de An Inconvenient Sequel, a “continuação” de Uma Verdade Inconveniente, que no final da projecção contará com uma intervenção em vídeo do ex-vice-presidente norte-americano Al Gore. Nas competições, vale desde já a pena marcar na agenda dois títulos que evocam as memórias do colonialismo e da independência: o assombroso Spell Reel, de Filipa César, finalmente em estreia nacional, em busca do cinema perdido da Guiné-Bissau, e O Canto do Ossobó, de Silas Tiny, que olha para a presença colonial em São Tomé e Príncipe.
Spell Reel e O Canto do Ossobó serão também projectados em sessões escolares, que têm lugar entre as 10h30 e as 14h, e que, para aqueles que tiverem essa disponibilidade, são este ano abertas ao público (e estão devidamente assinaladas no programa do festival, consultável em www.doclisboa.org). Alguns dos filmes mais aguardados deste Doc passarão igualmente nessas sessões: títulos como No Intenso Agora, do brasileiro João Moreira Salles, Dawson City: Frozen Time, de Bill Morrison, ou Beuys, de Andres Veiel.
O mais recompensador vai ser andar em percurso rally paper pela cidade, perseguindo filmes que, em muitos casos, dificilmente encontrarão o caminho da divulgação entre nós. Como dois dos títulos mais fortes da competição internacional, ambos vindos de presenças regulares no Doc. Em Also Known as Jihadi (Culturgest, dia 21, 16h15; repete dia 24 às 18h30 no São Jorge), o artista multimédia Éric Baudelaire inspira-se no dispositivo formal de um filme de 1969 de Masao Adachi para acompanhar todo o processo de investigação, vigilância e prisão de um jovem dos subúrbios parisienses, radicalizado em aspirante a terrorista, e que viajou até à Síria. O filme deixa em aberto o que Abdel verdadeiramente fez ou deixou de fazer, para se concentrar nos caminhos (reais e intelectuais) que ele percorreu; tudo é contado sem narração, através de imagens dos sítios por onde passou e de excertos dos relatórios judiciais, com um distanciamento abstracto que o torna no menos acessível dos títulos de um cineasta sempre fascinante, e já anteriormente premiado no festival.
No exacto oposto dessa abstracção está o monumental L’Héroïque lande (La frontière brûle) (São Jorge, dia 21, às 21h15; repete dia 27 às 19h30). Durante quase quatro horas (que fazem pontualmente lembrar Wang Bing), a dupla de longa data formada por Élisabeth Perceval e Nicolas Klotz acompanha “a quente” o quotidiano dos últimos meses do campo improvisado de refugiados da "Selva de Calais", criando um mosaico sufocante de vidas em suspenso, abandonadas num limbo e procurando uma esperança que talvez já não sejam capazes de reencontrar. Mas é, também, para acreditar que ela ainda existe que há o cinema – este cinema que o Doclisboa exibe com paixão, vindo de todo o lado e de lado nenhum. Cíntia Gil dizia ao PÚBLICO há umas semanas: “O Doclisboa é um lugar onde as coisas podem estar em diálogo. Um lugar que nos mostra que, com o cinema, nos podemos ensaiar como sociedade”. Façam o favor de entrar.