Constrói-se por todo o lado. E isso também nos está a matar

É impossível defender dezenas, centenas de casas enfiadas no meio dos matos e árvores. Há falhas na protecção civil porque sempre assim foi. O pior é que as lições não se aprendem e a obsessão pela construção prossegue.

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Adriano Miranda

O país já ardeu tanta vez, de forma tão ou mais calamitosa. Por que é que neste ano houve tantas mortes? A situação meteorológica excepcional que devastou Pedrógão Grande explica parte da enormidade dos números. Mas não foi isso que aconteceu domingo, em que também houve condições severas mas não inéditas. O desordenamento do território é uma explicação consensual — estão demasiadas casas floresta adentro. Mas essa é a situação de partida, conhecida, é o território que temos e a que a protecção civil deveria saber dar resposta. Não soube.

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O país já ardeu tanta vez, de forma tão ou mais calamitosa. Por que é que neste ano houve tantas mortes? A situação meteorológica excepcional que devastou Pedrógão Grande explica parte da enormidade dos números. Mas não foi isso que aconteceu domingo, em que também houve condições severas mas não inéditas. O desordenamento do território é uma explicação consensual — estão demasiadas casas floresta adentro. Mas essa é a situação de partida, conhecida, é o território que temos e a que a protecção civil deveria saber dar resposta. Não soube.

Quem se lembra dos incêndios de 2003 e de 2005, que queimaram mais área do que 2017 — pelo menos até agora —, não pode deixar de se questionar o porquê de nesses anos o número de vítimas ter sido um quinto ou menos do que agora. “Desta vez, o fogo atingiu zonas mais povoadas, há 11 e 13 anos andou por Castelo Branco, o vale do Tejo e o Sul, ou seja, zonas com menor densidade populacional”, diz Joaquim Sande Silva, da Universidade de Coimbra.

“Nota-se uma tendência, desde 2003, de os incêndios serem muito grandes. Com o padrão de ocupação de território que existe, um fogo de 30 mil hectares apanha logo várias aldeias”, explica José Miguel Cardoso Pereira, do Instituto Superior de Agronomia. Há, é certo, um problema de profusão de construção difusa, que dificulta o combate que não consegue dar resposta a tanta solicitação. “Mas se antes era claro que a prioridade era a defesa de pessoas e bens, deixando o incêndio correr na floresta, este ano não se deu prioridade nem às florestas nem às pessoas e bens”, acrescenta o engenheiro florestal.

João Soveral, da Confederação dos Agricultores de Portugal, não tem dúvidas: “Foi um problema de protecção civil, não de desordenamento.” Não que este não exista, mas “é o ponto de partida, não é o ponto de chegada, não foi este ano que o território ficou desordenado, já era assim”, acrescenta. Por isso, cabia à protecção civil agir em conformidade, o que não aconteceu: “Depois de Pedrógão fechavam estradas e evacuavam aldeias por tudo e por nada, neste domingo não fizeram isso em lado nenhum, houve dezenas de relatos de estradas abertas rodeadas pelo fogo, na mata de Leiria podia ter ocorrido uma tragédia semelhante à de Junho porque só se cortaram estradas muito tarde.”

Construir na floresta

Assim, aliado a um falhanço do sistema de protecção de populações, ficaram evidentes os erros de anos de autorizações de construção em locais com elevado risco de incêndio. Uma lição difícil de aprender, pois, na proposta de reforma da floresta apresentada pelo Governo, a inflexibilidade prevista na lei após os incêndios de 2003 e 2005 sobre a proibição de construir em zonas de elevado risco de incêndio foi posta em causa. “Os municípios queixavam-se que a regra era um entrave ao investimento e o Governo introduziu uma flexibilização na lei que autorizava casuisticamente construções caso o proponente tivesse meios de autoprotecção - era uma porta aberta para que tudo pudesse ser construído”, adianta João Soveral.     

A lei publicada em Agosto deste ano, porém, emana da Assembleia da República que, após as várias propostas recebidas e outras tantas críticas, redigiu um artigo com nove alíneas — antes tinha três — que ninguém percebe que efeitos práticos terá, dada a sua difícil interpretação.

Estas regras até poderão mudar, mas o país continua a ser um exemplo trágico de desordenamento. Sidónio Pardal, arquitecto paisagista e um dos mais críticos do actual modelo, propõe uma total revolução: definam-se claramente os usos do território — urbano, agrícola e florestal — e combatam-se as excepções.

“O que temos feito é proibir construir aqui e ali, dando a entender que, se for fora desses locais, pode-se construir em todo o lado. É como eu lhe dizer que não pode comer pedras, plásticos e papel e depois deixá-la comer tudo o resto, mesmo o que lhe faz mal”, explica o arquitecto.

Para Pardal, o Estado tem de aplicar o regime florestal aos espaços silvestres, que englobam terrenos públicos e privados, sendo os primeiros geridos por uns serviços florestais reforçados e altamente especializados, e os segundos pelos privados a quem os serviços florestais prestariam serviços e apoio científico e técnico. “Quanto menos povoados forem os espaços florestais, melhor”, defende. Aqui se implementariam técnicas eficazes para tornar a floresta mais resiliente ao fogo.

As áreas agrícolas seriam geridas pelos agricultores e as zonas urbanas pelas câmaras. Quem quisesse construir fora dos perímetros urbanos deveria ser desincentivado: “Se o planeamento urbanístico programar uma oferta pública de lotes urbanos, para venda ou permuta por prédios rústicos localizados fora dos perímetros urbanos, e cujos proprietários pretendem construir habitação própria na freguesia ou no concelho, conseguir-se-ia, desta forma, uma base de negociação para demover a construção dispersa”, defende.

Para montar todo este sistema seriam necessárias expropriações mas ganhar-se-ia, não só do ponto de vista do ordenamento, como se controlava a economia do território minimizando os impactos de um mercado imobiliário que tem sido responsável por sucessivas crises financeiras, sublinha. “O que o Estado tem gasto em infra-estruturação para servir construções falhadas — há 40 mil milhões de euros em imparidades nos activos imobiliários — é absurdo.”