O corpo em revolução

Dois conjuntos de trabalhos de Ernesto de Sousa reforçam a importância da sua obra na arte da segunda metade do século XX.

Fotogaleria

Ernesto de Sousa, felizmente, não necessita de grandes apresentações. Figura maior do contexto artístico português da segunda metade do século XX, curador, cineasta, fotógrafo, performer — ou seja, impossível de etiquetar —, tem sido objecto, desde 1997 pelo menos, de inúmeras exposições que actualizam o pensamento sobre a sua obra e o fazem dialogar com a produção artística contemporânea. Citemos apenas, a este respeito, a exposição homenagem que Serralves realizou nesse mesmo ano à Alternativa Zero, a grande colectiva de 1977, comissariada por Ernesto de Sousa, onde este apresentava um núcleo de artistas que cortavam radicalmente com a pintura e a escultura que preenchiam um discurso crítico e historiográfico onde as jovens gerações da época não se reviam; e em 2014, a exposição Ernesto de Sousa e a arte popular, onde Nuno Faria, no CIAJG de Guimarães, revisitava os trabalhos deste autor sobre os barristas e escultores ingénuos da década de 60. Isto, para não mencionar diversas colectivas, colóquios e conferências que, cada vez mais, tornam esta figura incontornável nos estudos sobre arte portuguesa contemporânea.

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Ernesto de Sousa, felizmente, não necessita de grandes apresentações. Figura maior do contexto artístico português da segunda metade do século XX, curador, cineasta, fotógrafo, performer — ou seja, impossível de etiquetar —, tem sido objecto, desde 1997 pelo menos, de inúmeras exposições que actualizam o pensamento sobre a sua obra e o fazem dialogar com a produção artística contemporânea. Citemos apenas, a este respeito, a exposição homenagem que Serralves realizou nesse mesmo ano à Alternativa Zero, a grande colectiva de 1977, comissariada por Ernesto de Sousa, onde este apresentava um núcleo de artistas que cortavam radicalmente com a pintura e a escultura que preenchiam um discurso crítico e historiográfico onde as jovens gerações da época não se reviam; e em 2014, a exposição Ernesto de Sousa e a arte popular, onde Nuno Faria, no CIAJG de Guimarães, revisitava os trabalhos deste autor sobre os barristas e escultores ingénuos da década de 60. Isto, para não mencionar diversas colectivas, colóquios e conferências que, cada vez mais, tornam esta figura incontornável nos estudos sobre arte portuguesa contemporânea.

Esta exposição, que apresenta dois conjuntos de trabalhos fotográficos, insere-se neste caminho de actualização da obra de Ernesto de Sousa. Atento e aberto às possibilidades de renovação da arte, tanto pela via de um novo olhar sobre o impulso criador mais genuíno e espontâneo (pela via dos artistas populares, como já mencionámos, mas também pela temática abordada no mais famoso filme que realizou, Dom Roberto) como pelo interesse sempre demonstrado por uma renovação das técnicas, dos processos e das linguagens artísticas do seu tempo, Ernesto de Sousa, que abraçou entusiasticamente os ideais da revolução de Abril de 1974, declinou logicamente este programa para o olhar próprio e o olhar do público sobre o corpo. Corpo do performer, claro, e também do artista, mas neste caso o corpo outro, um corpo que é em primeiro lugar o dos amigos com quem convivia quotidianamente, e por fim do corpo da mulher, companheira e amante, corpo outro de que aqui o artista-fotógrafo se apropria fazendo-o seu. Ambos os conjuntos de trabalhos, que provêm do espólio do artista, se inseriam num projecto global a que Ernesto deu o nome de O meu corpo é o teu corpo, e que desenvolveu até ao ano da sua morte, em 1988.

Provas de contacto, datadas de 1972 a 1980, são como o nome indica folhas de provas fotográficas restauradas recentemente. Ocupam a sala principal da galeria, e dão-se hoje a ler quase como frames de filmes onde percebemos a tentativa, para além da tradução documental do instante vivido, de registar todos os pontos de vista possíveis e vividos pelo fotógrafo. Há sempre um movimento implícito do corpo de Ernesto de Sousa que adivinhamos em cada imagem, e uma ocupação do espaço por esse corpo que fica aqui na sombra, invisível, aquém de todos os outros corpos. Os amigos, a mulher, tomam a dianteira, como sempre sucede na fotografia, relativamente ao autor. É de uma cena, de muitas cenas de sedução que aqui se trata — de um jogo onde quem seduz quem nunca fica completamente esclarecido

Foto

Olympia, a segunda série, datada de 1979 e também restaurada recentemente, é composta por uma série de fotografias e de um poema em fragmentos que alterna com as imagens fotográficas. As imagens, muitas delas voluntariamente não identificáveis, relevam dessa mesma alteridade identitária que já detectáramos nas Provas de contacto. Dois dos versos expostos confirmam aliás esta interpretação, dizendo que esta “é a história de Isabel

não é a história de Isabel”, sendo este um de muitos outros pares de afirmações e dos seus contrários que encontramos nesta peça.

Recorde-se que Olympia, a Olympia de Manet é provavelmente um dos mais importantes ícones da sedução feminina representada em pintura. A modelo olha o pintor de frente, nada incomodada pela nudez em que está, sendo que este olhar é também sinal de modernidade — o pintor, no fundo representa-se implicitamente nesta obra. Esta referência permite-nos efectuar um paralelismo entre o acto revolucionário que um dos primeiros modernistas pintava — uma rapariguinha nua que o olhava de frente — e a revolução que Ernesto de Sousa sabia que atravessava também o corpo — o seu, o dos seus pares, o da mulher. A revolução não se fazia, em 74 e nos anos que se lhe seguiram, apenas na rua e na política. Atravessava, trespassava o corpo e os modos de o olhar. É disso que se trata aqui.