Tutela "falseou" tempos de espera nos hospitais, diz o Tribunal de Contas
Acesso a consultas e cirurgias no SNS piorou nos últimos três anos. Entre 2014 e 2016, mais 27 mil doentes ficaram em lista de espera por uma cirurgia e mais de 2600 morreram antes de serem operados.
Se os números da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) dizem que se esperou menos pela primeira consulta de especialidade nos hospitais públicos entre 2013 e 2016, isso, afinal, não significa que o acesso tenha melhorado. Quer antes dizer que a ACSS falseou os indicadores, através de “procedimentos administrativos de validação e limpeza das listas de espera”, diz o Tribunal de Contas (TdC).
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Se os números da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) dizem que se esperou menos pela primeira consulta de especialidade nos hospitais públicos entre 2013 e 2016, isso, afinal, não significa que o acesso tenha melhorado. Quer antes dizer que a ACSS falseou os indicadores, através de “procedimentos administrativos de validação e limpeza das listas de espera”, diz o Tribunal de Contas (TdC).
As conclusões de uma auditoria do TdC ao acesso a cuidados de saúde no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que esta terça-feira foi divulgada, notam que a ACSS deu instruções aos hospitais para recusarem “pedidos de consulta com tempos de espera muito elevados” e fazerem uma “nova inscrição a nível hospitalar”. Desta forma, os resultados sobre o tempo de espera que os hospitais apresentavam eram “falsos”.
Diz ainda o TdC que, no ano passado, apenas 34% das primeiras consultas de especialidade hospitalar feitas no SNS entraram para as contagens do sistema de Consulta a Tempo e Horas (CTH). Ou seja, foram contabilizadas pouco mais de um milhão de consultas em vez das quase 3,5 milhões de consultas realizadas.
Acesso piorou
E assim, em vez de melhorar, o acesso a consultas e a cirurgias nos hospitais do SNS piorou ao longo dos últimos três anos. No final do ano passado, a lista de espera por uma cirurgia cresceu 15% (mais 27 mil doentes) e mais de um quarto dos doentes oncológicos estavam à espera de ser operados para além do tempo máximo de resposta previsto na lei.
A ACSS recusa, no entanto, estas acusações. Ao final desta terça-feira, em nota enviada aos jornalistas, esta entidade rejeita que tenha existido “qualquer intervenção artificial na gestão das listas de utentes” e refere que foi reforçado, no ano passado, o trabalho de “eliminação de erros administrativos que persistiam por limitações associadas ao sistema de informação de gestão do acesso às consultas e que colocavam em causa a obtenção de dados fiáveis e rigorosos.”
O Bloco de Esquerda já requereu uma “audição urgente” da presidente da ACSS, Marta Temido, na Comissão Parlamentar de Saúde.
Informação "não é fiável"
Os auditores do TdC são taxativos: a informação disponibilizada pela ACSS “não é fiável” porque há "falhas recorrentes” na passagem da informação dos hospitais para os sistemas centralizados de gestão. Muitas vezes, “os dados disponíveis no sistema de informação central não coincidem com os registos efectuados pelos hospitais”, concretizam.
Nas primeiras consultas hospitalares, entre 2014 e 2016, o tempo médio de espera passou de 115 para 121 dias, revela o TdC. A "degradação" do acesso traduziu-se ainda no aumento da percentagem de casos que não cumprem os tempos máximos estipulados na lei nas cirurgias (29% do total, no final do ano passado) e nas consultas (10,9%). Em ambos os casos, estes resultados interrompem “a tendência de melhoria que se verificava desde 2011”.
Também “os pedidos de consulta, cuja prioridade deveria ser determinada por um profissional médico, no hospital, no prazo de cinco dias, permaneceram em 2016, em média, entre 10 dias na Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte e 53 dias na ARS do Algarve, sem uma prioridade associada, demora que constitui um risco para a saúde dos doentes”, acrescentam os auditores.
Espera aumenta na oncologia
Quanto à área cirúrgica, entre 2014 e 2016, mais 27 mil doentes (mais 15%) ficaram em lista de espera. O tempo médio de espera por uma cirurgia aumentou 11 dias (mais 13%) e o incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos passou de 7,4% em 2014 para 10,9% no ano passado. Nestes casos, a espera foi “maior nos casos mais prioritários”, realça o relatório do TdC.
O tempo médio de espera por cirurgia, que tinha estado em declínio anos antes, cresceu 26% de 2012 até 2016.
Destaque para o aumento do tempo máximo de espera na cirurgia oncológica, onde “quase 20% dos utentes foram operados, em 2016, para além do tempo que seria recomendável”. Acresce que, no final do ano passado, o tempo máximo de espera “estava já a ser incumprido em mais de 27% dos utentes inscritos (1.214 utentes)”, notam os auditores.
No ano passado, 2605 pessoas morreram enquanto esperavam pela cirurgia. Destas, 231 eram doentes oncológicos.
E 2016 foi de facto o ano em que mais se deteriorou a capacidade de resposta dos hospitais às cirurgias oncológicas: esperou-se em média mais 6 dias do que no ano anterior. Os anos recentes contrariam assim a tendência de diminuição sentida entre 2006 e 2010, quando todos os anos se esperava em média menos 17,4 dias.
Hospitais contornam regras
Os auditores destacam ainda que há hospitais a contornar as regras de forma a apresentarem resultados positivos aos olhos das estatísticas: há consultas que são recusadas porque se iriam realizar fora dos tempos adequados e cirurgias de ambulatório, feitas no próprio dia, inscritas como cirurgias programadas - como tem 0 dias de tempo de espera influenciam “positivamente os tempos médios globais”.
Por isso, recomenda o TdC que Adalberto Campos Fernandes sujeite a verificações regulares, por uma entidade externa à ACSS, a qualidade dos indicadores de acesso. O tribunal insta ainda o conselho directivo da ACSS a não adoptar procedimentos administrativos que "resultem na diminuição artificial das listas e dos tempos de espera".
Atrasos nas transferências
A auditoria questiona ainda “a não emissão atempada e regular de vales-cirurgia e notas de transferência aos utentes em lista de espera”. Segundo o tribunal, no ano passado, “a ACSS interrompeu, por razões burocráticas, a transferência automática e regular dos utentes em Lista de Inscritos para Cirurgia”, agravando o tempo de espera e “condicionando o direito de acesso aos cuidados de saúde”.
Agora, o TdC recomenda que a emissão destes vales volte a ser automática. O objectivo é evitar situações como no último trimestre do ano passado, em que, num período de apenas 23 dias, a ACSS emitiu 60% do total anual de vales-cirurgia e notas de transferência. “Nos anos anteriores (2014 e 2015), a emissão de vales-cirurgia e notas de transferência ocorreu, como seria expectável, ao longo de todo o ano”, nota o TdC.
Ainda assim, muitas destas transferências não se concretizaram porque quase 11 mil vales-cirurgia foram cancelados por expiração do seu prazo e uma parte dos utentes já tinha cirurgias agendadas no hospital de origem.
Contudo, a ACSS garante que, no ano passado, “foram reforçados os procedimentos associados à gestão do acesso, com destaque para a emissão atempada das notas de transferência e dos vales-cirurgia”, através da contratação “de serviços de impressão, envelopagem e expedição destes documentos”. E, acrescenta este organismo, está em curso “a desmaterialização deste processo e o Centro de Contacto do SNS 24 contactará proactivamente os utentes para apoiar o acesso às cirurgias”.