Conhecia-se o risco mas mesmo assim queimou-se. E ninguém impediu
O furacão Ophelia trouxe massas de ar quente e seco de África para a Península Ibérica, um fenómeno agravado pelo vento. Já se sabia que assim seria e o país deveria estar em alerta máximo. Mas ninguém fiscalizou velhos hábitos e as fogueiras redundaram em tragédia.
É domingo, dão chuva para o dia seguinte. Nas propriedades acumulam-se sobrantes, há pastos e zonas de caça para limpar. E é Outubro. Hábitos de séculos impõem-se e pelo Norte e Centro fazem-se queimadas e fogueiras. Mas a meteorologia tinha avisado. O furacão Ophelia estava a pôr o país em alerta vermelho. Mas a inconsciência imperou, a fiscalização não se fez e boa parte de Portugal foi reduzida a cinzas e muitas vidas se perderam. Outra vez.
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É domingo, dão chuva para o dia seguinte. Nas propriedades acumulam-se sobrantes, há pastos e zonas de caça para limpar. E é Outubro. Hábitos de séculos impõem-se e pelo Norte e Centro fazem-se queimadas e fogueiras. Mas a meteorologia tinha avisado. O furacão Ophelia estava a pôr o país em alerta vermelho. Mas a inconsciência imperou, a fiscalização não se fez e boa parte de Portugal foi reduzida a cinzas e muitas vidas se perderam. Outra vez.
“Nós temos um problema patológico com o fogo”, diz António Salgueiro, um dos membros da Comissão Técnica Independente que analisou os fogos de Pedrógão Grande. “No final do Verão, começa-se a fazer queimadas de todo o tipo, anuncia-se que vem aí muito calor e nada se altera”, adianta.
“A proximidade do furacão teve um efeito de arrastamento das massas de ar quente e seco de África para a Península Ibérica, trazendo também ventos fortes de Sul”, explica Paulo Fernandes, também membro da comissão. Este braseiro meteorológico que atingiu o país conjugou-se com a abundância de ignições porque é a época das fogueiras e sabiam que ia chover.
Mas também todos sabiam que o risco era máximo. Quem é que o controlou? “Em 2008, o Grupo de Intervenção e Socorro da GNR palmilhava o país à caça das fogueiras e isso surtiu efeito”, conta António Salgueiro. Mas, neste domingo, nem autarquias nem ninguém andou a controlar aquilo que já se sabe que é um hábito enraizado. E um hábito difícil de contrariar: “Às vezes iam as equipas de sapadores tentar apagar as fogueiras e eram insultados, porque as pessoas não lhes reconheciam autoridade, tinham sempre que ir com a GNR atrás”, continua.
Mesmo quando entidades como os grupos de análise e uso do fogo, que Salgueiro integrou, faziam as queimadas controladas, não era raro o proprietário protestar que não era naquele sítio que queria, indo mais tarde queimar onde teimava que tinha de ser.
“Isto está tão entranhado na população”, lamenta Paulo Fernandes. “É preciso fazer um trabalho de sensibilização e repressão, até porque sabíamos como ia estar a situação.” O especialista diz que há mapas que indicam onde há recorrentes fogos intencionais, era uma questão de “fazer as rondas nessas áreas”.
Por que morre mais gente?
Uma meteorologia adversa, a inconsciência das pessoas e uma floresta desordenada e não gerida levaram à tragédia. Com um custo em vidas humanas muito superior aos anos de 2003 e 2005, que eram até agora os recordistas em termos de área ardida. Por que é que agora morre mais gente? Porque o território é completamente desordenado, autoriza-se a construção de casas por todo o lado e não há meios para defendê-las todas, dizem os especialistas. Só que é aí que se concentram os meios, deixando os incêndios na floresta crescer de dimensão até ao nível do dantesco. E agora arderam zonas com mais ocupação urbana do que nesses anos do início do século.
Há ainda outra enorme falha: os avisos à população, sublinha António Salgueiro: "Não há alertas, seja pelos telemóveis seja pela rádio e televisões, sobre o que fazer e o que não fazer, quais as estradas cortadas, etc. No Japão, assim que há um sismo, todos começam a receber mensagens no telemóvel, aqui não há nada disto".
Desta vez, também arderam as matas públicas, que têm mais gestão do que boa parte do território. “As matas são geridas como há 30 ou 40 anos atrás, o objectivo é retirar a madeira, quando deveriam ser um exemplo: um exemplo de reconversão para outras espécies, um exemplo de desbastes para baixar a carga combustível e um exemplo de uma floresta de uso múltiplo, de onde saem diversos produtos, como a resina”, diz António Salgueiro.
Para Paulo Fernandes, o problema é o de sempre — despeja-se dinheiro em cima do combate e a prevenção é o parente pobre: “O combate tem um orçamento próprio, a prevenção tem orçamentos difusos. Bastava dotar o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas com mais verbas, ou pelo menos não o obrigar a dar às Finanças todas as verbas que angaria. Em vez disso, recebe dinheiros disto e daquilo, que podem ser desviados a qualquer momento para outra alínea dos orçamentos.” No caso das matas públicas, exemplifica que o instituto tem de recorrer a candidaturas a fundos europeus com regras anacrónicas: “No caso da mata do Urso, houve um projecto para o desbaste e desramação mas depois era preciso apresentar um segundo projecto para remover o material. Veio um incêndio e levou tudo. Isto é completamente disfuncional.” Para não falar na carência absoluta de recursos humanos.