A miragem do Quinto Império desvaneceu-se...

Para mim, a miragem do "Quinto Império" desvaneceu-se perante esta tragédia, deixando apenas o sabor a mortes inocentes e a imagem dura e negra da realidade ardida

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Pedro Nunes/Reuters

Aqui há tempos, após a vitória do Salvador Sobral no Festival da Eurovisão, escrevi uma crónica que intitulei de O Quinto Império. Ainda inchada de orgulho por, finalmente, termos ganho um festival do qual, a maior parte das vezes, saímos humilhados, dei por mim a pensar que Portugal estava, de facto, a viver um momento bastante positivo. Relembro que escrevi a crónica com o pensamento em Fernando Pessoa e na sua ideia de que Portugal poderia ser o tal "Quinto Império" por ele idealizado. Pessoa imaginava um "Quinto Império" que iria resgatar o país da decadência em que se encontrava, transformando-o numa potência que reinaria sobre as outras. Mas esta potência não reinaria sobre as outras em termos políticos e económicos, seria antes um império de fraternidade universal, cultura e língua portuguesas. E, naquele momento, esta apologia do "Quinto Império" fez-me sentido.

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Aqui há tempos, após a vitória do Salvador Sobral no Festival da Eurovisão, escrevi uma crónica que intitulei de O Quinto Império. Ainda inchada de orgulho por, finalmente, termos ganho um festival do qual, a maior parte das vezes, saímos humilhados, dei por mim a pensar que Portugal estava, de facto, a viver um momento bastante positivo. Relembro que escrevi a crónica com o pensamento em Fernando Pessoa e na sua ideia de que Portugal poderia ser o tal "Quinto Império" por ele idealizado. Pessoa imaginava um "Quinto Império" que iria resgatar o país da decadência em que se encontrava, transformando-o numa potência que reinaria sobre as outras. Mas esta potência não reinaria sobre as outras em termos políticos e económicos, seria antes um império de fraternidade universal, cultura e língua portuguesas. E, naquele momento, esta apologia do "Quinto Império" fez-me sentido.

Finalmente começava a ser reconhecida a nossa qualidade. A selecção portuguesa em que poucos acreditavam, aquela que muitos vaticinavam regressar a Portugal ainda na fase de grupos, sagrava-se campeã europeia. A nossa figura de proa, Cristiano Ronaldo, era nomeada “o melhor do mundo”. A nível da literatura, relembrava que o nome de Portugal tinha ficado no mapa aquando da entrega do prémio Nobel da Literatura a José Saramago. Pensava que este poderia ser, finalmente, o ano do reconhecimento, por parte da Academia, do eterno candidato, António Lobo Antunes (verificou-se, afinal, que ainda não foi este ano). Vencíamos “sem espinhas” um festival cujo primeiro lugar sempre nos tinha escapado. O produto português era considerado por muitos — e é, de facto —como um produto de qualidade, fosse ele na área do calçado, do vestuário, dos móveis ou em tantas outras áreas em que o país se distingue pela qualidade que oferece.

A acrescentar a esta minha ideia, verificava-se que Portugal estava a atravessar uma fase muito positiva a nível turístico. Lisboa era apresentada como uma das cidades europeias mais bonitas e uma das mais seguras. As nossas praias há já algum tempo que eram reconhecidas pela sua qualidade e beleza. O país, de uma forma geral, era reconhecido pelo bom clima, pela boa comida e pela simpatia das suas gentes. E, como cereja no topo do bolo e mais uma vez a corroborar esta minha ideia de que Portugal está na moda, eis que Portugal vence pela primeira vez os "Óscares do Turismo", os World Travel Awards, como sendo o melhor destino europeu. Na linha deste pensamento relembraria, ainda, as várias figuras famosas que escolheram Portugal para por cá viver. Destacaria, entre as várias figuras, a Madonna, que, apesar de nos últimos tempos não parecer tão encantada com o país como se apresentava nas primeiras estadias por cá, tem feito uma enorme publicidade ao país e às suas maravilhas.

Perante todos os factos acima identificados, achava que a profecia de Pessoa se estava, finalmente, a concretizar.

A primeira facada neste meu pensamento encantado sobre Portugal e "Quinto Império" deu-se com a tragédia de Pedrógão. Como era possível, num país como o nosso, parte integrante da Europa, minimamente desenvolvido, conhecido pela sua beleza, acontecer uma tragédia destas? Era inimaginável “acontecer Pedrógão”. Mas aconteceu! E, para nos sentirmos mais calmos perante essa calamidade, ouvimos que a tragédia tinha acontecido perante situações muito especiais. O calor, um raio, o mau ordenamento do território, falhas no sistema de comunicação. Quiseram dar-nos a entender, quiseram fazer-nos acreditar que Pedrógão era um caso excepcional, que as 64 (?!) vítimas tinham sido fruto de um somar de situações que não mais voltariam a acontecer. E nós, povo português, quisemos acreditar. Quisemos mostrar a nossa solidariedade, ajudámos com dinheiro, géneros e rezas. E quisemos seguir em frente, acreditando que tinha sido uma fatalidade e que poderíamos falar disso, muitos anos depois, com um ar pesaroso, relembrando aquele fatídico dia de Junho de 2017.

Tudo isto aconteceu há quatro meses. Não é tempo suficiente para esquecer uma tragédia nem é tempo suficiente para voltar a vivê-la. Contudo, eis-nos mergulhados outra vez, quatro meses depois, no mesmo pesadelo. Mais uma vez aconteceram incêndios incontroláveis (523 no trágico domingo, 15 de Outubro, pelo que nos informa a comunicação social). Mais uma vez se morreu em larga escala no nosso país, fruto desses incêndios incontroláveis. Em Pedrógão encontrámos uma estrada da morte. E agora? Em Vouzela morreram pessoas nas suas próprias casas! Mais uma vez assistimos a céus dignos de um cenário de inferno, assistimos a populações completamente cercadas pelo fogo e que só puderam contar com elas próprias, assistimos ao arder de lares, assistimos ao sofrimento em directo. Não aprendemos nada com Pedrógão. Como podemos viver com essa informação, com essas imagens, com essas mortes, com esse sofrimento?! Verifico que a tragédia está sempre demasiado próxima de nós e que ela permite que aconteça o inimaginável.

E foi esta a segunda facada na minha miragem do "Quinto Império". Não sei quem são os culpados: território mal ordenado, escassez de meios (continuamos com temperaturas altíssimas, mas parece que a fase crítica já passou), fogo posto... Sei lá. Sei que, ainda mal recompostos da tragédia de Pedrógão, ainda com as memórias demasiado vivas, mais uma vez tivemos que lidar com estradas cortadas, hectares e hectares de zona verde ardida, casas destruídas e vidas destroçadas. E é neste momento que entendo que o "Quinto Império" sonhado por Fernando Pessoa está ali ao alcance da nossa mão, mas ainda não está nas nossas mãos. Um longo caminho foi percorrido, mas falta um outro tanto a ser palmilhado para lá chegarmos. Num "Quinto Império", este tipo de tragédia não poderia ser imaginado quanto mais vivido. Como dizia Pessoa, (ainda) “Falta cumprir-se Portugal”. Para mim, a miragem do "Quinto Império" desvaneceu-se perante esta tragédia, deixando apenas o sabor a mortes inocentes e a imagem dura e negra da realidade ardida.