Bonecos de Santo Aleixo percorrem o mundo, mas querem afirmar-se em Portugal
As marionetas, nascidas na aldeia alentejana de Santo Aleixo, encontraram “casa” no Centro Dramático de Évora. Apesar dos muitos espectáculos, continuam à espera do reconhecimento nacional
O Centro Dramático de Évora (Cendrev) já percorreu vários quilómetros para levar os Bonecos de Santo Aleixo a diversos pontos do país e do mundo. Este fim-de-semana, estiveram no Festival Internacional de Marionetas do Porto para um dos últimos espectáculos do ano de 2017. A companhia teatral é proprietária das marionetas tradicionais de varão há cerca de 30 anos, sendo também responsável pela sua conservação e restauro. O espólio adquirido nos anos 80 ao mestre António Talhinhas, último proprietário, tem reunido interesse de especialistas internacionais. Porém, não consegue vingar dentro de portas.
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O Centro Dramático de Évora (Cendrev) já percorreu vários quilómetros para levar os Bonecos de Santo Aleixo a diversos pontos do país e do mundo. Este fim-de-semana, estiveram no Festival Internacional de Marionetas do Porto para um dos últimos espectáculos do ano de 2017. A companhia teatral é proprietária das marionetas tradicionais de varão há cerca de 30 anos, sendo também responsável pela sua conservação e restauro. O espólio adquirido nos anos 80 ao mestre António Talhinhas, último proprietário, tem reunido interesse de especialistas internacionais. Porém, não consegue vingar dentro de portas.
“Olhamos para a investigação que foi feita sobre os Bonecos de Santo Aleixo e a maioria aparece escrita em inglês, francês ou espanhol”, diz José Russo, encenador e membro da direcção do Cendrev. Uma pequena pesquisa na Internet e verifica-se que os resultados vêm de fora do país: a “Enciclopédia Mundial de Teatro Contemporâneo”, de 2013, de Peter Nagy, Phillippe Rouyer e Don Rubin, tem uma referência aos bonecos alentejanos.
Talvez seja a primazia do interesse internacional face ao nacional que dificulte a precisão de quando e como os Bonecos de Santo Aleixo surgiram. Aos 61 anos, o também actor José Russo só consegue recordar os conhecimentos que lhe foram transmitidos, quando o Centro Dramático de Évora iniciou o processo de compra das marionetas ao mestre António Talhinhas.
Na altura, contaram com ajuda de um especialista, Alexandre Passos, que “fez um trabalho mais apurado em descobrir a origem dos bonecos”. “Não somos investigadores, somos actores e intervenientes no espectáculo. Não temos tempo, vocação e aptidões adequadas”, reconhece. Como todas as tradições, as marionetas de varão com cerca de 30 centímetros, manipuladas de baixo para cima, foram trabalhadas ao longo de várias gerações. Os primeiros bonecos terão surgido no século XIX, embora José Russo acredite que a inspiração terá começado um século antes. “Há referência a um padre em Vila Viçosa, concelho próximo de Évora, que terá utilizado as marionetas”.
Embora a casa permanente dos Bonecos de Santo Aleixo seja hoje em Évora, o próprio nome mostra que as marionetas tiveram outra origem. A aldeia de Santo Aleixo, no concelho de Monforte, distrito de Portalegre, guarda o nascimento destes bonecos -- inscrito de forma simbólica e efectiva no brasão da aldeia, onde aparecem três figuras penduradas num varão.
A partir de Santo Aleixo, as marionetas terão viajado um pouco por todo o Alentejo e terão chegado a Borba até às mãos do mestre António Talhinhas, com quem permaneceram cerca de 40 anos. O destino destes bonecos mudou, quando nos finais dos anos 80, o mestre foi incentivado a vender as marionetas. Corria-se o risco de a tradição se extinguir caso o espólio não permanecesse numa companhia teatral. “Ele trabalhou com os bonecos até ao final da década de 60, mas depois teve dificuldade em reunir pessoas para ajudá-lo”, explica José Russo. Segundo o actor, as filhas do mestre eram as principais ajudantes do pai, mas as circunstâncias pessoais e profissionais afastaram-nas de Évora e dos Bonecos de Santo Aleixo.
O actual membro da direcção do Centro Dramático de Évora não esteve directamente envolvido no processo de passagem do espólio, mas afirma ao PÚBLICO que terá sido um momento doloroso para o anterior proprietário. O mestre recebeu propostas de alguns coleccionadores de marionetas para adquirirem parte do espólio das marionetas de Santo Aleixo. Mas este preferiu mantê-las no teatro e em actividade e não em casas estranhas, tal qual pai a zelar pelo futuro dos filhos.
António Talhinhas ainda trabalhou com o Cendrev, de forma a garantir que o repertório e a conservação daquelas marionetas não se perdessem no tempo. De geração em geração vieram as candeias de azeite que iluminam os espectáculos, os cenários pintados à mão, as roupas, o retábulo (o lugar de representação e o palco dos bonecos) feito em madeira, o repertório, a música portuguesa e muitas das personagens -- as figuras bíblicas como Deus, Jesus, os irmãos Abel e Caim e Adão e Eva.
A maioria das peças do repertório tem carácter religioso como o “Auto da Criação do Mundo” ou o “Auto do Nascimento do Menino”, mas o profano também aparece. Em várias representações dos Bonecos de Santo Aleixo, dá-se vida e palco a realidades sociais do Alentejo onde o sotaque, os usos e costumes da região se fazem notar. Por exemplo, com as intervenções do mestre Salas e do padre Chancas. Embora sejam personagens fictícias, estão no imaginário de muitas pessoas por representarem o festeiro/mestre-de-cerimónias e o padre da paróquia, na organização das festas religiosas espalhadas por esse Portugal fora.
Da mesma forma que António Talhinhas aprendeu com o mestre anterior a si, Manuel Jaleca, também o Cendrev fez questão de preservar as histórias e identidades dos Bonecos de Santo Aleixo. Actualmente, a companhia teatral tem cerca de 76 marionetas deste espólio: as personagens são intercaladas em cada espectáculo, pelo que algumas são mais usuais do que outras em cima do palco. “Não acrescentamos nada deliberadamente”, diz José Russo. Ao longo de várias décadas, os bonecos têm tido as mesmas falas, atitudes e feitios: “O espectáculo funciona tal e qual como é. O que é bom é mantermos isto como está. Continua a ter uma actualidade e uma eficácia completamente surpreendentes”.
“Os Bonecos de Santo Aleixo mereciam ter outra atenção”
Desde a altura em que António Talhinhas recebeu cerca de 700 contos - hoje seriam 3500 euros - pelo espólio das marionetas tradicionais de varão, o panorama mudou muito no teatro e na cultura portuguesa, e as dificuldades também. Hoje, os Bonecos de Santo Aleixo são manipulados por cinco actores do Cendrev e mais um que acompanha o espectáculo com a guitarra portuguesa. Por ano, a companhia tem dezenas de espectáculos com as marionetas, dentro e fora de portas, mas o número não significa fartura.
“Podíamos ter este espectáculo todos os dias, mas só temos quando alguém nos pede, uma ou duas vezes. E mesmo assim, não conseguimos estar presentes em todas as ocasiões, porque muitos dos actores têm outros trabalhos”, explica o encenador do Centro Dramático de Évora. A precariedade registada no seio da companhia de teatro parte da falta de reconhecimento pelos Bonecos de Santo Aleixo e acaba nos orçamentos destinados à cultura.
“As condições em que trabalhámos são muito precárias e é espantoso, como nós, portugueses, temos esta jóia na mão e não a aproveitamos”, desabafa José Russo. Um dos principais objectivos do Cendrev é construir uma “casa dos bonecos” ou museu em Évora, para que as obras originais do mestre Talhinhas possam repousar – algumas estão expostas no Museu da Marioneta em Lisboa, “à espera de conservação”. No entanto, esta é uma ideia com 20 anos que nunca avançou por falta de verbas e que tem ficado nas entrelinhas do currículo e do passaporte dos Bonecos de Santo Aleixo -- que já estiveram no Brasil, Itália, Alemanha, Macau e Grécia.
Para além da exposição das marionetas, José Russo acredita que o futuro museu pudesse ser um bom sítio para os investigadores trabalharem e estudarem. “Os bonecos deviam estar num espaço próprio que pudesse ser dinamizado com visitas de estudo e com um sítio para os especialistas verem os bonecos e falarem com os atores”, refere. Se um especialista da Argentina ou do Brasil, algumas das nacionalidades que contactaram com o Centro Dramático de Évora, conseguem ver “um espólio único” nos Bonecos de Santo Aleixo, também em Portugal “mereciam ter outra atenção”, segundo o encenador.
O futuro poderá ser incerto, mas está alinhavado com aquilo que se esperava que fosse o destino dos Bonecos de Santo Aleixo: no seio de uma companhia teatral e a dar voz às figuras do Alentejo. O Cendrev já recebeu alunos universitários e de escolas performativas e com eles organizou oficinas de trabalho. O próximo desafio será manter as pessoas junto dos bonecos e profissionalizá-las de acordo com a tradição do teatro e do legado que lhes foi passado. “Implica trabalho como a fixação de textos. Não é em dez minutos que se aprende. É uma actividade profissional e tem-se dominar a técnica. Há um conjunto de elementos que é preciso saber fazer”, explica José Russo.
Os próximos espetcáculos dos Bonecos de Santo Aleixo será na cidade que os acolheu, Évora, de 11 a 16 de Dezembro, com o repertório natalício. O palco será na Biblioteca Pública de Évora. O mestre Salas e o padre Chancas não vão faltar.