O pesadelo de Madonna em Portugal
Para se viver em Portugal com direito a queixar-se não basta ter um visto, comprar casa e ajudar a alimentar um ou dois sectores importantes da economia; é preciso ser-se português a sério, daqueles que estão sempre a falar de Portugal nas redes sociais.
Tudo começa com um inocente vídeo partilhado no YouTube: uma fadista portuguesa leva a voz até Nova Iorque – ou Londres, ou Berlim – e no coração de milhares de compatriotas acende-se instantaneamente um gigantesco espectáculo de luz e cor. “Ganda Mariza?!”, “Oh gente da minha terra! I liked too much that song?”, “The very essence of being Portuguese?!”, cantam os babados descendentes de Viriato na caixa de comentários.
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Tudo começa com um inocente vídeo partilhado no YouTube: uma fadista portuguesa leva a voz até Nova Iorque – ou Londres, ou Berlim – e no coração de milhares de compatriotas acende-se instantaneamente um gigantesco espectáculo de luz e cor. “Ganda Mariza?!”, “Oh gente da minha terra! I liked too much that song?”, “The very essence of being Portuguese?!”, cantam os babados descendentes de Viriato na caixa de comentários.
Mas a bola é passada rapidamente para um brasileiro, que aparece na ponta esquerda a desafiar o orgulho português: “Canta bem, mas é meio chato.” Não! O que foste tu fazer. És claramente alguém que não conhece o código secreto partilhado pelos portugueses de todo o mundo: podes ficar com as jóias, o carro e a casa, mas não fales mal deles.
“N gostas de Portugal poe-te nos cotos! tb de certeza k n devo gostar do teu pais”, “Tinhas de ser brasileiro! Tas a comparar a beleza do teu povo com a nossa?” Por alguma razão, o português das caixas de comentários ouve “Canta bem, mas é meio chato” e percebe “Odeio Portugal e o vosso povo é mais feio do que o meu”.
É por causa disto que os artistas estrangeiros deviam ter mais cuidado ao escolherem um país para passarem uns meses ou uns anos escondidos dos holofotes: uma coisa é viver décadas em Los Angeles ou Nova Iorque com fotógrafos sempre atrás de nós e a ouvir boatos completamente estapafúrdios sobre a nossa vida; outra coisa, bem mais complicada, é manter-nos nas boas graças dos portugueses.
Os mais portugueses dos portugueses estarão agora a pensar: “Que jornalista mais idiota. Então ele acha que o país se resume às caixas de comentários na Internet? Depois admiram-se que os jornais estejam assim!” Não – o país não se resume às caixas de comentários, e ninguém está a dizer isso; acontece que isto não é uma notícia, pelo que podemos exagerar um bocadinho. (“Seu palhaço! Vai aprender a escrever!”)
Adiante. Quando se soube que a cantora – que digo? A rainha da pop! – Madonna estava a viver em Portugal, os portugueses foram abraçados por uma corrente de orgulho e felicidade. A Madonna? A viver em Portugal? Estamos mesmo na moda, Portugal é um dos dois melhores países da Península Ibérica para se passar férias e Lisboa e Porto não sei quê. OMG!, escreveu-se no Instagram de Madonna, hashtag iloveportugal.
Mas o pior estava para vir, pensavas tu, ó Madonna, que em Portugal é só calor e boa vida? Toda a gente sabe que é cada vez mais difícil comprar ou arrendar casa em Lisboa, e essa queixa passou a ser parte obrigatória em qualquer conversa entre jovens casais portugueses. Ou entre os casais em que pelo menos um deles é português. Porque se a queixa for feita por um estrangeiro qualquer – que digo? Pela Madonna! –, o país entra em modo caixa de comentários. “Ela que volte para a terra dela!”, “Olha-me para esse cabelo, mulher, não há espelhos nesse hotel?”
E a burocracia portuguesa? Não sabemos, todos nós, que mesmo num dia bom pode deixar-nos à beira de cometer dois ou três homicídios na Loja do Cidadão? Escrever “Sinto-me triste em Lisboa. O próximo capítulo do meu livro vai chamar-se Dança Lenta com a Burocracia” nem será das coisas mais ofensivas que passam pela cabeça de um português que se preze.
O erro de Madonna foi esse: para se viver em Portugal com direito a queixar-se não basta ter um visto, comprar casa e ajudar a alimentar um ou dois sectores importantes da economia; é preciso ser-se português a sério, daqueles que estão sempre a falar de Portugal nas redes sociais e que vão assistir a jogos da selecção portuguesa ao estádio. Ah, espera…
Esta Crónica encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO