Incêndios florestais, uma fraude de carbono e uma Ofélia ameaça
As alterações climáticas estão a materializar-se e a exceder em muitos casos a prudência dos modelos científicos.
Há alturas em que se sobrepõem vários problemas num demasiado curto espaço de tempo. Depois de a Humanidade ter acelerado a velocidade da informação, acelera também agora a velocidade dos fenómenos climáticos extremos, como vem sendo previsto e concretizado de forma aguda nas últimas duas décadas. Ainda não acabou a nossa época de incêndios fora da época de incêndios, com rescaldos ainda fumegantes no Centro e Norte do país, e a ameaça de um furacão atlântico dirigindo-se para a Europa já está sobre nós. Tudo isto nos mesmos dias em que o Governo anuncia com pompa um roteiro para a neutralidade de carbono até 2050 e em que sai o relatório da Comissão Técnica Independente para os incêndios, entrelaçando vários temas que, apesar de aparentemente isolados, estão na verdade em estreito contacto.
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Há alturas em que se sobrepõem vários problemas num demasiado curto espaço de tempo. Depois de a Humanidade ter acelerado a velocidade da informação, acelera também agora a velocidade dos fenómenos climáticos extremos, como vem sendo previsto e concretizado de forma aguda nas últimas duas décadas. Ainda não acabou a nossa época de incêndios fora da época de incêndios, com rescaldos ainda fumegantes no Centro e Norte do país, e a ameaça de um furacão atlântico dirigindo-se para a Europa já está sobre nós. Tudo isto nos mesmos dias em que o Governo anuncia com pompa um roteiro para a neutralidade de carbono até 2050 e em que sai o relatório da Comissão Técnica Independente para os incêndios, entrelaçando vários temas que, apesar de aparentemente isolados, estão na verdade em estreito contacto.
O relatório da Comissão Técnica Independente, criada pelo Parlamento para apurar causas e falhas dos incêndios do início do verão, principalmente em Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e zonas próximas, é peremptório em afirmar que estes incêndios são um “exemplo e um aviso de como os sistemas atuais de combate a incêndios não estão preparados para enfrentar um novo problema com raíz nas alterações climáticas”, e que o regime de incêndios extremos se irá gradualmente tornar no regime de fogo normal. As previsões de aumento de temperatura para 2050 e 2100 dão exactamente esse sinal: temperaturas muito mais elevadas, humidades muito menores, ondas de calor mais frequentes e mais prolongadas, noites muito quentes.
No dia 17 de Junho, Portugal Continental teve uma temperatura média de 29,4ºC, 10ºC acima da média para este dia entre 1971 e 2000. Na zona de Ansião-Pedrógão Grande, a temperatura esteve 13,9ºC acima da média 1971-2000. As humidades relativas mínimas estiveram entre os 15 e os 20%. Conjugando com outros factores como a disponibilidade de combustível seco e abundante sob a forma de matos e biomassa morta, a inflamabilidade de combustíveis finos e regulares disponíveis no pinhal e eucaliptal, a projecção rápida de fragmentos queimados de pinheiro e eucalipto e a hipótese de combustão quase explosiva de compostos voláteis (α-pineno no pinheiro, cineol no eucalipto), podemos começar a perceber as características específicas deste incêndio e como poderá repetir-se. Acresce a isto a falha do alerta precoce à população, que poderia ter evitado a catástrofe humana. Mas a violência, a velocidade do incêndio e a dimensão do mesmo são consequência das alterações climáticas e da estrutura florestal de monoculturas de eucalipto e pinhal, do abandono e da falta de acções. A reforma da floresta de Julho só começou a tocar muito ao de leve no problema.
Na véspera da apresentação do relatório dos incêndios florestais, o primeiro-ministro e o ministro do Ambiente juntaram-se na Culturgest para apresentar o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Este objectivo foi anunciado por António Costa na última Cimeira do Clima em Marraquexe, e supostamente seria o cumprimento por parte de Portugal do Acordo de Paris, isto é, manter o aumento da temperatura abaixo dos 2ºC até 2100. O evento pretendia mostrar o compromisso do Governo na redução das emissões de gases com efeito de estufa, tendo Costa destacado a importante vulnerabilidade do país aos efeitos das alterações climáticas como um dos motivos centrais da sua proposta “ambiciosa”. O que ficou demonstrado foi que há a percepção do tema como potencial ganho político, mas que se mantém a inação como política de Estado. A habilidade contábil pautou o evento, especialmente quando o primeiro-ministro anunciou uma redução de emissões de 30 a 40% até 2030, quando comparado com os níveis de 2005. A escolha de 2005 como base para a redução é central: as emissões nesse ano, ainda antes da crise financeira, eram particularmente altas (86,3 Mt de CO2, segundo a Agência Portuguesa do Ambiente) e uma redução de 30 a 40% até 2030 significaria apenas atingir um valor entre 52 e 60 Mt. Em 2016, o nível de emissões foi de 66,5Mt de CO2, pelo que o corte anunciado por António Costa é na verdade entre 9 e 22%. Ora, para ambicionarmos sequer atingir os tais 2ºC do Acordo de Paris, devemos atingir um nível de emissões próximo das 24 Mt de CO2 em 2030. Isso significa um corte de 44 Mt. A proposta “ambiciosa” do Governo para cortes de emissões é cerca de um terço dos cortes em emissões necessários e assim, infelizmente, dirigimo-nos para o caos climático através, entre outros, de uma fraude contabilística de carbono. Para cumprir os seus objectivos, não foram elencadas quaisquer medidas concretas, baseando-se até ao momento o “Roteiro” em declarações vazias e evitando temas quentes como as concessões petrolíferas e a lei da prospecção, pesquisa e produção de petróleo (que aumentaria as emissões), o encerramento das centrais a carvão no Pego e em Sines (responsáveis por perto de 20% das emissões nacionais) e o facto de o maior sumidouro de carbono, a floresta, estar a perder uma área de dez mil hectares por ano há mais de duas décadas, além de ter recorrentemente a maior área ardida da Europa.
Entretanto, dos lados do Atlântico chegam-nos os efeitos de um oceano mais quente e energético. 2017 já produziu o maior número de furacões consecutivos no Atlântico desde o século XIX. Houve 16 depressões, 15 tempestades tropicais e dez furacões (cinco dos quais acima de categoria 3, muito destrutiva). No final deste fim-de-semana, o agora furacão Ophelia chegará às costas da Europa, seguindo caminho distinto dos restantes furacões atlânticos do ano. Embora o mais provável destino sejam as costas da Irlanda, existe a possibilidade real de o Ophelia se aproximar de Portugal e da Galiza, reproduzindo efeitos como os da tempestade Hércules em 2014. Mesmo que o trajeto vá para Norte, os efeitos do Ophelia não passarão ao largo e o fim do verão deverá chegar agora, com a possibilidade de chuvas intensas e o regresso imediato de outras ameaças como as cheias e inundações.
A época de incêndios termina a meio de Outubro, com a chegada de um furacão tropical e 90% do território, em seca extrema a severa, poderá estar imediatamente ameaçado de cheias. As alterações climáticas estão a materializar-se e a exceder em muitos casos a prudência dos modelos científicos. Caminhamos para bater os 2ºC de aumento de temperatura não em 2100, mas provavelmente perto de 2050. É decisivo ter uma política climática que corte emissões num período muito acelerado e, simultaneamente, prepare o território, cada vez mais ardido, seco e abandonado, para o futuro. Anúncios ambiciosos já não servem para nada.