Os nossos tempos de turbulência na visão de Margaret Atwood
A escritora canadiana recebe este domingo o Prémio da Paz dos Editores e Livreiros Alemães, em Frankfurt, e esteve na feira do livro a conversar com os jornalistas.
“Oh boy, essa pergunta é uma batata quente”, reage descontraída a escritora Margaret Atwood, que este domingo vai receber na Igreja de São Paulo, em Frankfurt, o Prémio da Paz dos Editores e Livreiros Alemães, e que na manhã de sábado deu uma conferência de imprensa na feira do livro a decorrer na cidade.
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“Oh boy, essa pergunta é uma batata quente”, reage descontraída a escritora Margaret Atwood, que este domingo vai receber na Igreja de São Paulo, em Frankfurt, o Prémio da Paz dos Editores e Livreiros Alemães, e que na manhã de sábado deu uma conferência de imprensa na feira do livro a decorrer na cidade.
Um jornalista espanhol, lembrando que ela já tinha sido agraciada com o Prémio Príncipe das Astúrias das Letras em 2008, perguntou-lhe o que pensa da actual situação em Espanha. “Pode ser um sinal dos tempos… Mas se o é, é um sinal dos tempos muito lato no tempo. Pelo menos, desde há 100 anos. O momento é de turbulência em toda a parte, estamos num período de mudança”.
A autora do romance O Assassino Cego (ed. Livros do Brasil), que recebeu o prémio Man Booker em 2000, lembrou que se viveu uma situação muito estática durante a Guerra Fria, uma época que descreveu como aquela em que as coisas pareciam estar todas arrumadas no sítio certo.
“Quando estive em Berlim, em 1984, ninguém pensava que essa situação ia mudar. Cinco anos depois, tudo mudou. A seguir, atravessámos um período nos anos 1990 em que as pessoas escreviam livros muito estranhos, com títulos como O Fim da História [referia-se à obra de Francis Fukuyama], sobre coisas que não aconteceram”, disse lançando uma gargalhada. “Talvez agora as mudanças sejam mais rápidas. Tal como acontece naqueles jogos infantis em que se mudarmos uma peça, todas as outras mudam de sítio reagindo a isso”, acrescentou.
“Já disse um milhão de vezes que não posso prever o futuro, porque não há um só futuro, existem inúmeros futuros possíveis, e não sabemos com qual deles vamos apanhar. Mesmo onde só exista o caos, haverá sempre alguém a ver uma oportunidade”.
Os tempos mudaram
A autora de O Ano do Dilúvio, O Coração É o Último a Morrer, Órix e Crex ou Desforra - A Dívida e o Lado Sombrio da Riqueza (todos na Bertrand) não tem dúvidas de que estaremos a viver numa época que lembra o período anterior à Segunda Guerra Mundial. “Como muitos já comentaram, incluindo eu, estamos a viver num momento que lembra os anos 1930. O que surpreende os europeus é que hoje está a acontecer nos Estados Unidos. Quando escrevi A História de Uma Serva [ed. Bertrand], nos anos 1980, o livro era a resposta à pergunta: ‘E se houvesse um regime totalitário nos Estados Unidos, de que tipo seria?’ Quando escrevi esse livro, ainda estávamos na Guerra Fria, o Muro ainda existia em Berlim e os europeus ainda olhavam para os Estados Unidos como um grande pilar da democracia e da liberdade de expressão. Não queriam acreditar que qualquer coisa parecida com o que era descrita naquela obra poderia acontecer ali. Mas, hoje, os tempos mudaram. E infelizmente tornou-se possível pensar-se nesses termos. Por isso, livros que já nessa época falavam sobre totalitarismos ficaram mais populares agora”, disse a autora que viu recentemente ser levadas à televisão duas obras suas, The Handmaid's Tale – adaptação de A História de Uma Serva, uma série em que as actrizes não usam maquilhagem, por isso “parece tão real”, referiu, produzida pelo serviço de streaming Hulu e premiada nos Emmys – e Alias Grace, produzida pelo Netflix, e que se estreará em Novembro.
Margaret Atwood sublinhou em Frankfurt que nos primeiros lugares das listas de best-sellers norte-americanas está um livro intitulado Sobre a Tirania - Vinte Lições do Século XX, do historiador Timothy Snyder (ed. Relógio d’Água). Recomendou a sua leitura. “É muito inteligente, e vai directo ao que interessa, sobre como uma democracia se pode transformar em tirania e o que podemos fazer para impedir que isso aconteça.”
À escritora que receberá este domingo o famoso prémio alemão, no valor de 25 mil euros – que já foi atribuído a autores como Orhan Pamuk ou Svetlana Alexievich, que anos depois vieram a receber o Nobel da Literatura –, foi perguntado se ficou decepcionada por não ter sido, mais uma vez, a escolhida da Academia Sueca. Respondeu que o Nobel não é uma das suas preocupações. E à pergunta de um jornalista, “se eu fosse Donald Trump e estivesse aqui à sua frente, o que me diria?”, respondeu com sentido de humor: “Se você fosse o Donald Trump, teria um penteado diferente. Acho que não teria hipótese de lhe dizer nada, porque provavelmente você estaria a falar sem parar”. E soltou uma gargalhada concluindo com um “acho que ele realmente não ouve ninguém”. E que só poderia pedir que lhe tirassem aquela conta de Twitter das mãos.
“Quando não for tão famosa…”
O escândalo em torno do produtor Harvey Weinstein, acusado de assédio e de abuso sexual, também foi assunto da conferência. Uma situação de exploração das mulheres que não é nova, nem de agora, mas que a conjugação “dinheiro, poder e advogados” tem ajudado a safar muita gente. No entanto, Atwood acha que as redes sociais, com a sua ressonância, têm ajudado as pessoas a falarem publicamente, a combater e a desmistificar a ideia de que entre os progressistas e de esquerda não há abusadores – nem todos são conservadores e executivos da Fox News. “A questão seguinte deve ser: ‘Como devem as pessoas ser tratadas?’ E a resposta é: ‘Não devem ser tratadas como Harvey Weinstein as tratou'”, concluiu.
Sobre o papel dos escritores, hoje, e sobre se acredita que ainda têm influência, Atwood defendeu que não se pode dizer aos escritores o que devem escrever, ou que papel devem ter. Se se tenta fazer isso, já se está no domínio da tirania ou do totalitarismo, disse. Além de que, se se tenta fazê-lo, os escritores fazem o contrário. “Nunca resulta dizer aos escritores que papel devem ter. Devemos comentar aquilo que escreveram. Mas é claro que as palavras têm influência, e que os livros também, apesar de não tanto os romances, acontece mais com a não-ficção.”
A escritora canadiana defendeu ainda a ideia de que os romances reflectem a sociedade em que se inserem, e não conseguem evitar isso. “Mesmo que se esteja a escrever um romance histórico, ainda continua a ser um romance dos nossos tempos. Se escrevermos um romance sobre o futuro, ainda é um romance do nosso tempo, porque ninguém foi ao futuro e voltou, que se saiba…”, brincou. “Os romances reflectem o nosso tempo, e isso pode ter influência em cada leitor, individualmente, quando o leva questionar: ‘É este o futuro que queremos?”, acrescentou Atwood, revelando depois que prepara a saída de mais um livro de poemas, que espera que saia nos próximos dois anos. “Quando não for tão famosa”, ironizou, mostrando uma vez mais o seu fantástico sentido de humor.