Pode uma freguesia unir-se à volta da cerveja? Sim, e convidar toda uma cidade
Marvila ainda mantém a sua autenticidade mas também está num momento de viragem, atraindo novos negócios. No sábado, três cervejeiras organizam uma festa de inspiração alemã mas que se quer à marvilense.
Foge-lhes a memória para as docas, a Fábrica Militar de Braço de Prata, a Fábrica Nacional de Sabões, a Tabaqueira, os fósforos, a borracha, os armazéns de vinho de Abel Pereira de Fonseca, para o frenesim das horas de almoço onde os trabalhadores saíam e preenchiam as ruas de Marvila. No último minimercado da Rua Afonso Annes Penedo, numa zona a que chamam Marvila Velha, reúnem-se os que ali resistem para passar o tempo. “Já chegou a haver cinco mercearias, lojas de hortaliça e muitos vendedores ambulantes aqui nesta rua”, diz António Ferreira, de 72 anos, o dono da mercearia.
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Foge-lhes a memória para as docas, a Fábrica Militar de Braço de Prata, a Fábrica Nacional de Sabões, a Tabaqueira, os fósforos, a borracha, os armazéns de vinho de Abel Pereira de Fonseca, para o frenesim das horas de almoço onde os trabalhadores saíam e preenchiam as ruas de Marvila. No último minimercado da Rua Afonso Annes Penedo, numa zona a que chamam Marvila Velha, reúnem-se os que ali resistem para passar o tempo. “Já chegou a haver cinco mercearias, lojas de hortaliça e muitos vendedores ambulantes aqui nesta rua”, diz António Ferreira, de 72 anos, o dono da mercearia.
António começou no comércio aos 11 anos e viu as fábricas abrirem, fecharem, e os milhares de operários que ocupavam os passeios da rua na hora de almoço a desaparecerem. “Chegava aqui a esta porta e não se viam os passeios. Era tanta gente, tanta gente”, recorda. Mas depois do 25 de Abril, conta, aquela zona oriental da cidade foi perdendo o fulgor desses tempos. As fábricas e os pequenos negócios foram fechando e os grandes armazéns abandonados.
Agora, um novo fôlego parece chegar. “Há muita gente à procura de casa aqui”, diz Leonor Ferreira, de 74 anos, mulher de António que lhe dá uma mão na mercearia. De há um par de anos para cá, os armazéns esquecidos começaram a ter novos inquilinos. Galerias de arte, produtoras, empresas de realização, estúdios de arquitectura, que têm arrastado outras pessoas, jovens que dali tinham desaparecido. António diz que os novos espaços que têm aberto têm “pouca influência” no negócio. “São galerias, com uma pessoa”.
Daqui a “meia dúzia de anos”, acredita António, não há portugueses de classe média que consigam arrendar uma casa ali. “No espaço de um ano arranjei uma casa de três assoalhadas a um colega por 350 euros. Passado três ou quatro meses, o mesmo senhorio, numa casa igual, arrendou-a sabe por quanto? Seiscentos euros!...”, atira.
O Bairro da Cerveja de Lisboa
Chegadas nesta leva de novos residentes, há três cervejeiras que querem tornar Marvila na freguesia da cerveja na capital. Os produtores da Dois Corvos, da Musa e da Lince têm as suas fábricas separadas por 50 metros. “Acaba por ser o epicentro da cerveja artesanal em Lisboa. É uma feliz coincidência estarmos aqui os três em Marvila”, diz Susana Cascais, que fundou a Dois Corvos com o marido, Scott.
A proximidade não foi planeada, dizem. Aconteceu porque em Marvila havia armazéns disponíveis e adequados às necessidades de quem queria instalar uma pequena fábrica de cerveja. Num ambiente underground, fabril e “decadente”, ligado aos vinhos, ao azeite, à borracha. “É um ambiente simpático”, diz António Carriço, que lançou a Lince em 2015.
Mas dela resolveram tirar proveito, criando o “Lisbon Beer District” (Bairro da Cerveja de Lisboa, em tradução livre), onde este sábado se realiza a Oktober Fest – um festival cervejeiro inspirado na tradição alemã. Com este festival querem que se comece a desenhar uma “marca” que atraia as pessoas para ali e para que percebam que Marvila é “uma zona porreira”. Depois, acreditam, é um ciclo: as pessoas vão até Marvila o que faz com que as galerias estejam abertas mais tempo, que abram mais restaurantes...
“Geralmente as cervejeiras costumam trazer muita vida aos sítios porque são sítios giros de estar, muito atreitos à actividade cultural, para estar com os amigos”, diz Bruno Carrilho que trocou a consultoria pela cerveja e co-fundou a cervejeira Musa.
Este sábado, o dia é itinerante: entre visitas guiadas às três fábricas, comida de rua e concertos, do meio-dia pela noite dentro, no quarteirão que liga as três cervejeiras e que contempla as ruas do Açúcar e Capitão Leitão.
Às 14h está marcada uma visita à fábrica da Dois Corvos, às 15h30 abrem-se as portas da Lince e às 16h30 as da Musa. Depois será possível beber uma cerveja no seu (muito recente) espaço aberto ao público, no Tap Room (zona de degustação) da Dois Corvos e no Bar Capitão Leitão que vai servir de montra às cervejas da Lince.
Apesar de concorrentes, as três cervejeiras estão “no mesmo barco”, garantem. O desafio é comum: fazer crescer o mercado da cerveja artesanal, que é “muito pequeno” em Portugal, comparado com as duas grandes marcas comerciais. “Mais importante que a fatia do bolo é fazer um bolo maior”, diz António.
Tanto que o saber-fazer dos cervejeiros das três casas se juntou para criar três novas cervejas que serão comercializadas com a chancela Lisbon Beer District.
Cerveja e arte nas ruas
Há nas ruas pouca gente, poucos jovens, muitos edifícios, alguns pintados de fresco e barulho de obras. Uma realidade que hoje é diferente de quando os cervejeiros se instalaram ali. Marvila está a tornar-se um bairro interessante para o resto dos lisboetas. E é isso que quem se junta no minimercado da rua quer. “A gente quer é convívio, muita gente”, diz Leonor.
No sábado, além da cerveja, há espaço também para a arte. Coincidência nas datas, arranca também o festival Poster que quer transformar Marvila num galeria de arte com trabalhos artísticos de músicos, como Sérgio Godinho, o coreógrafo e bailarino Rui Horta, a designer norte-americana Jessica Walsh e a ilustradora e baixista dos Linda Martini Cláudia Guerreiro. Também as galerias de Francisco Fino e Baginski vão estar abertas.
Um estúdio de música ouviu falar da iniciativa e vai dar um concerto na rua. De tarde e à noite há ainda música com Joaquim Quadros (17h30), The Poppers (18h30), D.N.A (19h30) e Isaac Ace (22h) vão actuar no interior das fábricas. Às 16h30 há actuação de Manuel Fúria & os Náufragos.
Para já, têm contado com a ajuda de quem por ali resistiu. O restaurante Floresta Encantada que costuma estar fechado aos sábados à noite vai abrir com um menu especial. Geralmente há comida do Minho, influência das raízes em Ponte da Barca, de onde saíram há 17 anos, conta Maria de Fátima Cerqueira, 64 anos, sentada à porta do restaurante que gere há doze. Nesta festa, foram desafiados a criar um menu que inclua uma cerveja da Dois Corvos. "Como é uma festa alemã... a gente só sabe que há salsichas de todos os feitios e maneiras", diz Susana Lopes, 34 anos, a filha que gere o restaurante. À portuguesa, há salsichas, entremeada e febras.
Nos últimos anos, os clientes foram rareando. “Quando a gente abriu trabalhávamos muito mais. Às duas e meia ainda tínhamos sala cheia”. Tinham uma fábrica logo abaixo dentro dos gradeamentos onde agora se lê "Vende-se", recorda. Agora, conta, já se nota diferença. Já se começa a ver mais pessoas, por causa da cerveja, diz, mas também de turistas que ficam no recente hostel instalado ali ao pé.
“As pessoas gostam de ver isto a crescer e querem colaborar”, diz Bruno. Como quando precisa de umas escadas ou de sítio para guardar os carros e vai à oficina do lado, às letras de madeira que preenchem o menu e as cerâmicas onde servem a comida que foram feitas por novos artesãos ali do bairro. Ou as madeiras que a Dois Corvos foi buscar ao madeireiro umas ruas acima para fazer os bancos do Tap Room.
No sábado, a entrada é livre. Será necessário pagar o copo, uma espécie de caução que será depois devolvida. O próximo evento será no Natal. Para tornar isto uma festa da comunidade e fazer com que o resto da cidade venha comemorar com ela.