"Com este crescimento eu teria, no mínimo, um défice zero"
Daniel Bessa diz que o país não largou a austeridade e se os resultados da economia o surpreendem, explica-os não pela estratégia do Governo mas pela dinâmica das exportações. O que mais o incomoda é a dívida. Tanto que, se mandasse, aplicaria toda a folga orçamental na conquista de um défice zero
Na sala de entrada da Porto Business School onde dá aulas, Daniel Bessa sente-se em terra firme. A sua intervenção política é um “diletantismo”, que não o inibe de assumir posições críticas contra a política financeira do Governo, a elogiar Rui Rio ou Emmanuel Macron ou a agradecer a Passos Coelho. Mas é como académico com forte ligação às empresas que mais gosta de se projectar. Nessa condição, congratula-se que a economia cresça não pelo consumo como previa o Governo, mas pelo lado da exportação. E lamenta que não se olhe mais “para amanhã” e se faça um esforço maior para travar “o barril de pólvora” da dívida.
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Na sala de entrada da Porto Business School onde dá aulas, Daniel Bessa sente-se em terra firme. A sua intervenção política é um “diletantismo”, que não o inibe de assumir posições críticas contra a política financeira do Governo, a elogiar Rui Rio ou Emmanuel Macron ou a agradecer a Passos Coelho. Mas é como académico com forte ligação às empresas que mais gosta de se projectar. Nessa condição, congratula-se que a economia cresça não pelo consumo como previa o Governo, mas pelo lado da exportação. E lamenta que não se olhe mais “para amanhã” e se faça um esforço maior para travar “o barril de pólvora” da dívida.
Está surpreendido com o crescimento da economia este ano?
É interessante que comecemos por esta pergunta. O que é que podiam esperar? Eu sou um dos que acharam que o Diabo chegaria e até disse que chegou em Pedrógão, mais do que em Tancos. Mas falando de coisas sérias, é mais do que eu esperava e fico contente por ser conseguido- e isto é que acho que é relevante – nos antípodas daquilo que o Governo tinha prometido.
Ou seja…
Ou seja, a mudança de chip na condução da coisa pública prometia um crescimento pela procura interna, através da devolução dos rendimentos e de toda essa orientação. Pela despesa pública não poderia crescer muito, como já sabemos, mas cresceria pelo consumo privado determinado pela devolução dos rendimentos. Mas a economia cresce puxada pelas exportações. Alguns mais mauzinhos do que eu dizem que a Europa e o Mundo está todo a crescer e nós nem sequer nos distinguimos muito, mas eu não vou tão longe. Dizer que os outros também crescem diminui muito o nosso sucesso. Não, é bom, é melhor do que eu esperava, é conseguido de uma forma diferente da que o Governo disse que ia fazer. Ainda bem que o Governo, sabe-se lá porquê, contra aquilo que tinha anunciado, vê as coisas correrem bem.
E este crescimento é sustentável?
A questão central que nos conduz a essa pergunta é o turismo. O turismo é o elemento mais activo e mais poderoso. Há boas notícias nas mercadorias, no calçado, no vestuário, na metalomecânica, que no início deste ano anunciou nível de crescimento de dois dígitos. Mas quer se queira, quer não, em termos de volume o que está a contribuir mais é o turismo. E há grandes hesitações em Portugal em torno do turismo que eu olho com algum espanto. Custa-me a perceber. Que os portugueses se questionem se é sustentável, eu até percebo – embora do meu ponto de vista o seja, porque o turismo é um modo de vida como outro qualquer. Surpreende-me é que no momento em que o turismo, num português mais prosaico, está a dar, haja tanta gente preocupada, a dizer que é demais. Eu acho francamente que o turismo nunca é demais. Pode ser de menos a resposta que lhe damos.
Está a haver uma resposta de menos?
Ainda é cedo para vermos isso. Para já eles estão a vir. Há muitas formas de turismo. Há formas mais inesperadas, como os que nos vêm cá visitar vão ao ponto de comprar as casas. Isso mudou o mercado imobiliário em Portugal. Eu acho que o turismo está bem e se aqui e ali há algum sintoma de que é excessivo, nós temos é que responder com oferta. Para mim nunca é demais. Não me incomoda ver os restaurantes cheios. Estão cheios? Aparecerão outros, qual é o problema? Se as casas estão ocupadas, começarão a vender-se. Há uma questão política, e essa percebo: se nos centros históricos das cidades o turismo faz subir o preço da habitação, os residentes têm menos espaço e vão ver-se expulsos. Mas, com toda a sinceridade, já há gente politicamente correcta em Portugal que chegue, expulsos é uma forma de dizer. Mais vale ver encarecer a habitação no centro da cidade e ter de encontrar uma residência um pouco mais longe do que por exemplo ser expulso do campo para a cidade porque no campo não há modo de vida. Isso incomoda-me. Isso é uma expulsão que me incomoda do ponto de vista político.
A economia cresceu pelas exportações, como disse…
… eu gostava que o meu Governo reconhecesse isso…
… mas o Governo não deixou de cumprir o que tinha anunciado. A devolução de rendimentos foi feita.
Foi feita, mas não é isso que está a puxar a economia. Cada euro gasto ajuda, mas o que está a puxar pela economia são as exportações e a maionese que prende esta situação é o dia em que isso chegou ao investimento. As exportações já estavam a crescer e o maldito investimento não respondia. Agora começa a responder. Os últimos números que vi levaram-me a dizer que o crescimento é saudável e consistente, porque as exportações começam a empurrar o investimento. Um dos grandes problemas do consumo é que parte do consumo é importado. Se devolvo rendimentos e as pessoas aproveitam para comprar coisas importadas, que contributo dou para o crescimento? Zero. Pode haver todas as razões para devolver rendimentos, mas não me digam que é para fazer crescer a economia.
Olhando para as previsões do Banco de Portugal, a situação parece muito favorável. Crescimento das exportações e do investimento, défice externo anulado….
Não vivemos no melhor dos mundos. Quem tem uma dívida como nós temos não vive no melhor dos mundos. Está sobre um barril de pólvora, aquietado pelo Banco Central Europeu. A melhoria do rating dá um pequeno contributo nosso para essa aquietação, mas, há poucos dias atrás, havia investidores qualificados que estavam proibidos de investir aqui. Porque era lixo. Um país que está numa situação destas está sob um barril de pólvora. Está tudo bem por cima, à superfície, na aparência, mas há um barril de pólvora.
É a sua principal preocupação?
É a minha principal preocupação. A minha vida são as empresas – ando aqui na política por graça, por diletantismo, para me pôr à prova. Enfim, é o que é. Mas a minha vida são as empresas e os negócios e se eu comparar o que se passou no país com o que aqui (na Porto Business School, onde decorreu a entrevista) recomendei durante décadas é que se gira risco. O que este país não geriu, ou geriu muito mal, foi risco. Acumulou dívida em excesso, um dia as coisas desandaram e a dívida caiu em cima de nós.
Continuamos a gerir mal o risco?
Continuamos a gerir mal o risco. Vieram-me perguntar o que fazia se tivesse de conduzir o orçamento. Eu acho que com o crescimento que a economia está a ter, no mínimo, no mínimo eu tinha défice zero. Mais, em vez do zero eu propunha 0.5% de excedente.
Ou seja, pegava no excedente de mil milhões e aplicava-o na redução do défice.
Sim. Isso é que daria ao mundo um sinal de que os dez milhões de senhoras e cavalheiros deste país estão preocupados com este problema e, de uma vez por todas, resolveram dar-lhe uma resposta.
Mas não era possível baixar o IRS, aumentar as pensões…
Não.
Mas as opções políticas não têm de ter mais em conta as pessoas do que os números?
Vamos ver o que diz o doutor Rui Rio sobre isso (risos). Ele tem a mesma tentação que eu de meter aqui um grãozinho de uma racionalidade diferente, que não é a da política. Este país tem esse problema da dívida. Ia-se desgraçando por causa disso. Eu gostava de dizer aos portugueses, olhos nos olhos, que qualquer pequeno sinal que possamos dar que sentimos esse problema e que estamos dispostos a atacá-lo, seria extremamente remunerador. Não sei em quanto desceria os juros da dívida quando houver condições normais de mercado. Mas, esqueçam os mil milhões. Fiquemos pelos 500 milhões por ano. Sabe quantos anos são precisos? São precisos 500 anos para pagar a dívida. Não é muito (risos). Era um pequeno sinal. Eu percebo que a população não queira ouvir falar disso. Mas o meu problema não é com o português comum, é com a elite. Por que é que a elite não é capaz de, olhos nos olhos, dizer temos aqui um problema?
Com essa política, no quadro actual, o Governo cairia por falta de apoio do BE e do PCP.
Pois. E agora? Será um preço a pagar pela democracia.
Não há méritos em fazer esse combate ao défice de uma forma mais faseada, combinando-o com a estratégia de devolução de rendimentos?
Repare, já não se fala só de devolução de rendimentos. A devolução de rendimentos foi o programa durante dois anos. Agora não é bem disso que ouço falar. A ideia de devolução era devolver o que foi tirado, portanto repor. Eu acho que esse programa no essencial estará cumprido. Mas o mundo não acaba hoje. Há um amanhã. Eu percebo que as pessoas queiram o hoje, o mais depressa possível. Mas, do ponto de vista colectivo, um país que sabe que tem um problema que se chama dívida, que lhe pôs a corda ao pescoço, que criou todos estes problemas e está agora na mó de cima, a crescer, por que é que não aproveita para melhorar as condições das pessoas mais lentamente e dar um sinal de que estaria disponível para pagar a dívida em 500 anos?
Fala-se num novo ciclo de obras públicas. O Governo quer envolver o PSD num acordo para uma nova geração de obras públicas. O país precisa de novas obras públicas? E que obras públicas?
Eu até ouvir falar de um acordo de regime, exigindo uma maioria qualificada e eu acharia isso perfeito. O país precisa de obras públicas, como é evidente. O país tem um ou dois problemas que estão mais do que identificados: na ligação ao exterior para apoiar o movimento de exportação e a integração na economia global, há um grande acordo de que há problemas sérios em matéria de ligações ferroviárias e de infra-estrutura portuária. Seja maior, seja menor, Lisboa precisa de melhorar a sua oferta aeroportuária. O país precisa de obras públicas. O que talvez não precisa é daquilo o que na altura se chamou a auto-estrada rosa – uma terceira auto-estrada Lisboa Porto. Sabemos muito pouco dos bastidores disto tudo. O processo de escolha destas coisas deve ter muito que se lhe diga. Teve, de certeza.
Hoje estamos mais atentos para fazer esse escrutínio?
Sim. Acho que temos obrigação. Peço desculpa, é seguramente old fashioned, mas eu vejo a política como um serviço aos cidadãos. Não consigo olhar para a política como maneira de criar empregos para os meus amigos, de encher o meu bolso, de dar ganhar aos empresários que me são simpáticos.
Uma das discussões que tem havido sobre a política deste Governo tem a ver com o virar de página da austeridade. Portugal virou essa página?
Não. Não virou. É verdade que há reposições de rendimentos mais rápidas do que aquelas que a alternativa oferecia. Mas há grandes problemas com a despesa pública, de falta de meios. O investimento atrasou-se muito. Toda a gente sabe que o investimento [público] em 2016 deu um grande contributo para o défice porque não foi executado. É uma forma de austeridade. Há uma grande pressão sobre o consumo – o tema das cativações. É uma forma de austeridade. Não quero falar de mais, mas há áreas em que as entidades públicas se queixam claramente de que são empurradas para a suborçamentação. Não há muitos dias fui confrontado com uma entidade pública onde foram dadas ordens para orçamentar x, sabendo-se que ia ser gasto mais. Portanto, tudo se fez por atrasos nos pagamentos aos fornecedores, o que é uma forma de financiamento como qualquer outra.
Não o surpreende que o PCP e o Bloco se mantivessem fiéis a esta política que cumpre os compromissos europeus, que baixa o défice…
Se eu quiser ser honesto, esse é um grande contributo que António Costa dá à política portuguesa. Mesmo que eu não goste dos meios. Trazê-los para a esfera do poder, normalizar, é bom. Aqueles senhores que foram eleitos com quase 20% dos votos não contavam, por culpa deles, punham-se à margem. E aparece um senhor que os traz para dentro.
Defende a visão de Emmanuel Macron para a Europa, nomeadamente sobre a necessidade de um ministro das Finanças e de um orçamento para a zona euro? Isso faz sentido no momento actual da Europa?
Eu admiro o Macron. Há ali uma coisa que não correu muito bem, que é a ideia de a mulher ter uma remuneração. Eu vejo nele um cavalheiro que, certo ou errado, está convencido que é preciso mudar algumas coisas e está disponível para encabeçar essas batalhas, para ganhar ou para perder. Ele já jogou, foi ministro da Economia, perdeu e foi embora. Eu admiro um cavalheiro que chega à política com esta frontalidade se dispõe a arrostar com enormes dificuldades no campo interno. E sobre a Europa, achei piada ao que disse o ministro dos Estrangeiros [Augusto Santos Silva] ao PÚBLICO: “Precisamos da ambição francesa e da sageza alemã”. Eu acho que o Macron está nisto com uma visão sobre a Europa e com propostas positivas. Ele propôs um ministro das Finanças e um orçamento. Se viesse só com o ministro das Finanças se calhar era caricato. Um orçamento já não é tão caricato. Ele quer um ministro para gerir um orçamento. Nos Estados Unidos há um orçamento de 17% do PIB enquanto o daqui arrasta-se e luta para chegar a 1,2% que está estabelecido. Se quisermos ter mais Europa precisamos de ter mais orçamento.