Confiemos na democracia espanhola
A Espanha de hoje nada tem que ver com o período franquista, época em que predominou esse nacionalismo espanholista de má memória. Não o reconhecer constitui um acto de pura má-fé política e intelectual.
Na semana passada, numa sessão do Parlamento Europeu, vi-me obrigado a fazer uma defesa enfática da democracia espanhola. Não estava nas minhas mais longínquas cogitações proferir qualquer consideração acerca da chamada “questão catalã” enquanto parlamentar europeu — se o fiz foi por um imperativo de consciência face aos inusitados ataques que a extrema-direita e a extrema-esquerda europeias se empenhavam em desferir contra o Estado espanhol. É óbvio que há um problema na Catalunha. É um problema sério, com uma vasta ressonância histórica que expede para as peculiares circunstâncias em que se processou e consolidou a formação do moderno Estado espanhol. Se é verdade que a Catalunha nunca foi independente — ou o foi em minúsculos lapsos temporais — também é certo que um olhar para a história de Espanha nos relembra imediatamente a importância da permanente tensão entre a vocação centralista castelhana e a vontade oposta dos aragoneses em geral e dos catalães em particular. Nós próprios, portugueses, conhecemos bem quão vasto e perigoso é o ímpeto hegemónico castelhano. É por isso natural que haja até na sociedade portuguesa uma certa simpatia pela reivindicação catalã, muito reforçada, de resto, pela ideia de que em 1640 a revolta desse povo mediterrânico acabou por ajudar à restauração da independência nacional. Essa ligação à Catalunha reforçou-se do ponto de vista dos contactos culturais no início do século XX, quando se chegou a manifestar a ideia delirante da identidade entre os dois povos, o português e o catalão. Tão excêntrico ponto de vista alicerçou-se na convicção de que só na língua catalã existiria uma palavra capaz de traduzir em toda a sua plenitude a palavra portuguesa saudade. Teixeira de Pascoaes, em polémica com António Sérgio (e não só), invocou na altura o catalão Ignasi Ribera i Rovira, grande conhecedor e amigo de Portugal, o qual afirmava peremptoriamente que a palavra catalã enyorança constituía a única tradução perfeita do nosso vocábulo “saudade”, e que este sentimento só era próprio de catalães e portugueses. Pascoaes não excluía os galegos desse conjunto, os quais considerava, porém, pertencentes ao universo cultural português. Nessa mesma época, um dos principais nomes da cultura catalã, o poeta Joan Maragall, preconizava o conceito de iberismo assente na ideia de três grandes nações peninsulares: uma atlântica, correspondente à Galiza e a Portugal, outra Castelhana e uma outra, mediterrânica, constituída pelos países catalães. Maragall preocupou-se ainda em salientar as similitudes entre os portugueses e os catalães, perspectivando-os como os dois povos dotados de uma verdadeira inclinação marítima no contexto peninsular. O já citado Ribera i Rovira foi ainda mais longe, concebendo um novo movimento cultural catalão, o enyorantism, que constituiria a versão local do saudosismo português criado por Pascoaes. Toda esta efervescência cultural ocorreu no contexto da afirmação de dois movimentos intelectuais semelhantes: a Renascença Portuguesa e a Renaixença Catalana.
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Na semana passada, numa sessão do Parlamento Europeu, vi-me obrigado a fazer uma defesa enfática da democracia espanhola. Não estava nas minhas mais longínquas cogitações proferir qualquer consideração acerca da chamada “questão catalã” enquanto parlamentar europeu — se o fiz foi por um imperativo de consciência face aos inusitados ataques que a extrema-direita e a extrema-esquerda europeias se empenhavam em desferir contra o Estado espanhol. É óbvio que há um problema na Catalunha. É um problema sério, com uma vasta ressonância histórica que expede para as peculiares circunstâncias em que se processou e consolidou a formação do moderno Estado espanhol. Se é verdade que a Catalunha nunca foi independente — ou o foi em minúsculos lapsos temporais — também é certo que um olhar para a história de Espanha nos relembra imediatamente a importância da permanente tensão entre a vocação centralista castelhana e a vontade oposta dos aragoneses em geral e dos catalães em particular. Nós próprios, portugueses, conhecemos bem quão vasto e perigoso é o ímpeto hegemónico castelhano. É por isso natural que haja até na sociedade portuguesa uma certa simpatia pela reivindicação catalã, muito reforçada, de resto, pela ideia de que em 1640 a revolta desse povo mediterrânico acabou por ajudar à restauração da independência nacional. Essa ligação à Catalunha reforçou-se do ponto de vista dos contactos culturais no início do século XX, quando se chegou a manifestar a ideia delirante da identidade entre os dois povos, o português e o catalão. Tão excêntrico ponto de vista alicerçou-se na convicção de que só na língua catalã existiria uma palavra capaz de traduzir em toda a sua plenitude a palavra portuguesa saudade. Teixeira de Pascoaes, em polémica com António Sérgio (e não só), invocou na altura o catalão Ignasi Ribera i Rovira, grande conhecedor e amigo de Portugal, o qual afirmava peremptoriamente que a palavra catalã enyorança constituía a única tradução perfeita do nosso vocábulo “saudade”, e que este sentimento só era próprio de catalães e portugueses. Pascoaes não excluía os galegos desse conjunto, os quais considerava, porém, pertencentes ao universo cultural português. Nessa mesma época, um dos principais nomes da cultura catalã, o poeta Joan Maragall, preconizava o conceito de iberismo assente na ideia de três grandes nações peninsulares: uma atlântica, correspondente à Galiza e a Portugal, outra Castelhana e uma outra, mediterrânica, constituída pelos países catalães. Maragall preocupou-se ainda em salientar as similitudes entre os portugueses e os catalães, perspectivando-os como os dois povos dotados de uma verdadeira inclinação marítima no contexto peninsular. O já citado Ribera i Rovira foi ainda mais longe, concebendo um novo movimento cultural catalão, o enyorantism, que constituiria a versão local do saudosismo português criado por Pascoaes. Toda esta efervescência cultural ocorreu no contexto da afirmação de dois movimentos intelectuais semelhantes: a Renascença Portuguesa e a Renaixença Catalana.
É evidente que há uma grande diferença entre um país que foi consolidando a sua independência ao longo de quase nove séculos e uma região que verdadeiramente nunca garantiu essa mesma independência. Ao longo da história, em particular nos últimos dois séculos, os catalães beneficiaram das políticas proteccionistas adoptadas pelas autoridades centrais de Madrid e, mau grado algumas momentâneas exasperações nacionalistas, conviveram razoavelmente com a sua condição de parte integrante do estado espanhol. A tentativa de estabelecer no plano político qualquer paralelismo entre Portugal e a Catalunha é hoje profundamente ridícula. Abstendo-me da formulação de qualquer juízo peremptório sobre a pretensão catalã, sempre lembrarei que a mesma se tem vindo a alicerçar num discurso nacionalista construído nas últimas décadas à boleia de um autonomismo consagrado na Constituição democrático-liberal aprovada pelos espanhóis em referendo, em 1978. Esse nacionalismo não está infelizmente isento de alguma contaminação xenófoba, exclusivista e nalguns casos extremos imbuída de um discurso que apelando à genética se aproxima perigosamente das teorias racistas.
Argumentarão alguns, com algum propósito, que os nacionalismos periféricos espanhóis surgiram — ou pelo menos se insuflaram — no século XX por oposição a um nacionalismo espanholista-catolicista de inspiração reaccionária. Acode-lhes alguma razão, a qual se extingue, contudo, com o advento da democracia em Espanha. A partir desse momento não só se reconheceram e valorizaram as autonomias nacionais ou regionais como se permitiu a consolidação desses mesmos nacionalismos periféricos. A Espanha de hoje nada tem que ver com o período franquista, época em que predominou esse nacionalismo espanholista de má memória. Não o reconhecer constitui um acto de pura má-fé política e intelectual.
Uma vez mais não deixa de ser curioso verificar a convergência de opiniões em relação à questão catalã entre Joana Mortágua, Nigel Farage e um deputado açoriano do PPM que propôs a aprovação de uma resolução recomendando ao governo português o reconhecimento do direito da autodeterminação da Catalunha. No fundo, os três ignoram um dado elementar: o carácter profundamente democrático do Estado espanhol que resultou da Constituição de 1978. Não deixa de ser curioso verificar como a nossa festiva extrema-esquerda se extasia irrefletidamente com a mais pequena perspectiva de insubordinação civil. No seu delírio púbere e pueril projecta na reivindicação catalã a utopia de uma revolução eternamente falhada.
Estou certo de que os espanhóis acabarão por resolver pacificamente o problema catalão, para grande frustração de algumas hordas extremistas que tudo querem confundir. Foi este regime democrático saído da transição pacífica e da constituição de 78 que permitiu à Catalunha e às demais nacionalidades e regiões espanholas uma afirmação autonómica sem precedentes históricos e sem paralelo na Europa. A Espanha democrática, liberal e profundamente empenhada no projecto europeu saberá encontrar a resposta adequada a uma questão que não pode nem deve ser ignorada. O consenso alcançado entre o PP, o PSOE e os Ciudadanos aponta claramente nesse sentido. A perspectiva de uma reforma constitucional agora aberta pelo entendimento alcançado entre os dois maiores partidos espanhóis augura o surgimento de um novo modelo de organização político-territorial capaz de atender às legítimas expectativas dos próprios catalães. Confiamos na democracia espanhola, que já deu provas de saber resistir a ameaças tão sinistras como aquelas que se consubstanciaram no movimento golpista de 1981 e no hediondo terrorismo protagonizado pelos extremistas nacionalistas marxistas da ETA.