Orlando descongelado
Luísa Costa Gomes mergulhou em Orlando, um dos mais insólitos objectos literários do século XX, e regressou com um monólogo que usa as palavras de Virginia Woolf para contar outra história. Emília Silvestre dá-lhe corpo e voz na peça A Grande Vaga de Frio, que se estreou no CCB.
Biografia alucinada da sua amiga Vita Sackville-West, história paródica da literatura inglesa desde o período isabelino até ao século XX, retrato dos constrangimentos sociais e culturais de várias épocas, denúncia das limitações impostas em função do género, sátira dos meios literários, reflexão sobre a criação literária e os paradoxos da identidade, crítica do próprio género biográfico: tudo isto se encontra no Orlando de Virginia Wolf, e nada disto esgota o delirante e espirituoso divertimento literário que a autora publicou em Outubro de 1928. Orlando, o protagonista, nasce no século XVI, dá por si enigmaticamente transformado em mulher quando anda pelos 30 anos, atravessa nessa desconfortável condição toda a preconceituosa época vitoriana, e está ainda vivo (ou viva) nas primeiras décadas do século XX, não dando sequer sinais de ter envelhecido.
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Biografia alucinada da sua amiga Vita Sackville-West, história paródica da literatura inglesa desde o período isabelino até ao século XX, retrato dos constrangimentos sociais e culturais de várias épocas, denúncia das limitações impostas em função do género, sátira dos meios literários, reflexão sobre a criação literária e os paradoxos da identidade, crítica do próprio género biográfico: tudo isto se encontra no Orlando de Virginia Wolf, e nada disto esgota o delirante e espirituoso divertimento literário que a autora publicou em Outubro de 1928. Orlando, o protagonista, nasce no século XVI, dá por si enigmaticamente transformado em mulher quando anda pelos 30 anos, atravessa nessa desconfortável condição toda a preconceituosa época vitoriana, e está ainda vivo (ou viva) nas primeiras décadas do século XX, não dando sequer sinais de ter envelhecido.
Décadas de leituras e interpretações foram transformando este prodígio de imaginação num clássico do feminismo, e a mudança de género do protagonista fez de Orlando uma obra de culto LGBT. Perspectivas que o texto em parte fundamenta, mas que de algum modo congelaram o livro, como aconteceu aos pobres ingleses apanhados pela Grande Vaga de Frio de 1709, um episódio central no romance de Woolf, e que deu título à dramaturgia que a ficcionista e dramaturga Luísa Costa Gomes concebeu a partir dele.
“O projecto foi-me proposto pelo encenador Carlos Pimenta, que queria trabalhar com a actriz Emília Silvestre e revisitar a memória do livro de Virginia Woolf”, conta a escritora. No entanto, depois de reler Orlando, não a estimulou a ideia de revisitar as muitas leituras que o texto foi gerando e as imagens que sobre ele se depositaram, até porque, argumenta, “o próprio Orlando já é uma revisitação de uma série de géneros literários”, uma memória. “Fazia mais sentido para mim, e pareceu-me até mais apropriado ao espírito com que Virginia Woolf escreveu o livro, apropriar-me dele e usá-lo doutra forma”, explica. “A matéria da peça – não consigo deixar de lhe chamar peça – é o texto de Orlando [mais precisamente, a tradução que dele fez Ana Luísa Faria para a edição da Relógio D’Água], mas a história que ela conta é diferente”.
A explicação mata a literatura
A Grande Vaga de Frio, um título que desde logo põe esta dramaturgia a salvo de exercícios burocráticos de verificação de semelhanças e diferenças com o livro de Woolf, é “uma espécie de sequência, um Orlando 2”, diz Luísa Costa Gomes. A peça que o Ensemble – Sociedade de Actores estreia quinta-feira no Centro Cultural de Belém, com direcção de Carlos Pimenta e interpretação de Emília Silvestre – e que passará em Novembro pelo Teatro Carlos Alberto, no Porto –, inicia-se onde termina o romance de Virginia Woolf: a cena em que Orlando procede ao funeral da sua opus magnum, entregando à terra o acarinhado poema O Carvalho, que fora escrevendo ao longo de sucessivas gerações, e em cada momento ao estilo da respectiva época.
“Fantasia paródica muito imaginativa sobre trezentos anos de literatura, do período isabelino ao modernismo de Bloomsbury”, Orlando, diz, Luísa Costa Gomes, “tem páginas alucinantes de talento literário, e de uma leveza, uma graça, que seduzem tanto como a personagem que elas criam e modelam”. E “como todos os grandes livros, que não se deixam ler com evidência e não se rendem à interpretação monocórdica”, foi “visto e interpretado de muitas maneiras, por vezes contraditórias”, mas “mantém o seu enigma, o seu valor de fantasia universal da liberdade de género”.
A dramaturga reconhece que o livro se “tornou uma bandeira LGBT”, mas pensa que as questões da identidade género “não são o tema fundamental” de Orlando, uma obra “extremamente divertida e completamente extravagante”, e que o é justamente por “manter esse mistério, essa ambiguidade”, já que, defende, “a explicação, qualquer que ela seja, mata a literatura”.
Resistindo à tentação de cristalizar o texto de Woolf numa nova leitura necessariamente redutora, talvez se possa dizer que Luísa Costa Gomes optou por “descongelar” Orlando: sem domesticar a estranheza das palavras de Woolf, usou-as para contar a sua própria história, uma história em que também existe um livro, mas que já está concluído quando a narração se inicia, uma história que também aborda as limitações sociais resultantes do género, uma história em que se vai ouvindo recorrentemente a afirmação “sexo diferente, a mesma pessoa”, com a própria repetição a instalar a dúvida: será que se é de facto a mesma pessoa quando se muda de género?
No romance, tudo corre bem a Orlando, que enquanto jovem favorito da rainha Isabel I vai obtendo cargos e honrarias, até que um dia, depois de uma noite de amor (e de um imprevidente matrimónio secreto) com a bailarina cigana Rosina Pepita, acorda mulher. “Não é propriamente uma mudança de sexo, já que não houve intervenção cirúrgica de espécie nenhuma, é claramente um programa de mudança de género, nota Luísa Costa Gomes. “A pergunta que atravessa toda a minha peça é esta: o que implica a mudança de género, em que medida a circunstância histórica, social, cultural, física, psíquica, altera a pessoa?” E a sua resposta é que “obviamente altera”, sendo disso exemplo “a própria Virginia Woolf, que sentiu absolutamente na pele essa limitação das possibilidades”.
Uma “reparação cómica”
A Grande Vaga de Frio começa em 1928 e não se sabe ao certo quando termina, embora alguns sinais de que anda no ar “um espírito guerreiro, libertino e isabelino”, possam fazer pensar nos “primeiros clarins da Segunda Guerra”, admite a dramaturga, que escolheu este título porque o capítulo da Grande vaga de Frio “tem as imagens mais sugestivas de todo o livro”. Foi “uma vaga de frio real, na qual morreram milhares de pessoas, mas Virginia Woolf vê-a de uma maneira muito física, pormenorizada”, nota Luísa Costa Gomes: “há pessoas pulverizadas no ar pelo vento gelado, são imagens de extrema violência, mas de uma violência de gelo, que congela num momento, enquanto as imagens de descongelação são imagens de caos, de blocos de gelo que se entrechocam, da imensa angústia dos que passam para a morte, apanhados pela torrente do degelo”. E elege entre todas “a imagem espantosa da vendedeira de maçãs que fica congelada, visível na sua actividade, mas morta, e que se torna o espectáculo favorito do Rei”, um instantâneo que “tem a sua contrapartida no bloco de gelo que passa na torrente com a mesa do banquete ainda posta”.
Claro que a congelação e descongelação têm, quer em Orlando, quer nesta peça, segundas leituras evidentes. Luísa Costa Gomes reconhece que o monólogo que construiu “é muito difícil para a actriz que o tem de dizer”, porque implica mudar constantemente de registo – “começa como narradora, passa a personagem, interpela fantasmas, fala sozinha, fala de si como outra” –, mas acredita que “essa fluidez do eu e do ele, e do eu e do ela, faz jus à libertação (ou descongelação) da narrativa do eu que o próprio romance de Woolf propõe”.
Emília Silvestre ri-se quando lhe perguntámos se está a ser assim tão difícil. Não nega, mas diz que está também a ser muito divertido. “É o primeiro monólogo que faço em que não sou propriamente uma personagem, e esta possibilidade de ser narrador e personagem, homem e mulher, e tanta coisa ao mesmo tempo, está-me a dar imenso prazer”, garante a actriz.
“Uma peça não é um romance, segue outros protocolos”, lembra Luísa Costa Gomes, e a tradução é ainda mais problemática quando é necessário atender, como aqui, às imposições formais do monólogo. Para descrever o modo como o seu texto se relaciona com o original de Virginia Woolf, a escritora socorre-se de uma imagem: “Gosto de pensar n’A Grande Vaga de Frio como uma cerzidura, cosida no texto do Orlando”.
Uma relação paradoxalmente literal e livre ao mesmo tempo. As mesmas palavras (ou quase), contam uma história diferente, na qual até há lugar àquilo a que Luísa Costa Gomes chama “uma espécie de reparação cómica”, com Orlando a “voltar à à forma original, ao tempo em que foi feliz”. E a mesma pergunta volta a colocar-se: será a mesma pessoa?