De Michael Jackson ao rebético, Alexandra Bachzetsis transita no seu próprio corpo
A coreógrafa suíça apresenta-se em Serralves e no Teatro Nacional São João, no Porto, com um programa duplo em que explora configurações corporais e outras convenções de género.
“Acho a ideia de neutralização do corpo bastante repugnante.” Alexandra Bachzetsis nunca lidou muito bem com aqueles primeiros anos de formação e trabalho em dança contemporânea, quando lhe pediam para se comportar como um corpo neutro (colaborou com as companhias Sasha Waltz & Guests e Les Ballets C de la B, entre outras). Para o bem e para o mal, foram também esses anos que adubaram terreno para aquilo que viria a ser o seu trabalho em nome próprio: um corpo numa encruzilhada de referências às artes contemporâneas e, sobretudo, à cultura pop – dos paradigmas de beleza de Hollywood a poses de filmes porno, dos push-ups do ginásio aos videoclipes libidinosos de música R&B.
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“Acho a ideia de neutralização do corpo bastante repugnante.” Alexandra Bachzetsis nunca lidou muito bem com aqueles primeiros anos de formação e trabalho em dança contemporânea, quando lhe pediam para se comportar como um corpo neutro (colaborou com as companhias Sasha Waltz & Guests e Les Ballets C de la B, entre outras). Para o bem e para o mal, foram também esses anos que adubaram terreno para aquilo que viria a ser o seu trabalho em nome próprio: um corpo numa encruzilhada de referências às artes contemporâneas e, sobretudo, à cultura pop – dos paradigmas de beleza de Hollywood a poses de filmes porno, dos push-ups do ginásio aos videoclipes libidinosos de música R&B.
“Como jovem mulher, ou mesmo menos jovem, é muito difícil não te sentires um ser sexual”, diz a coreógrafa suíça ao PÚBLICO a partir de Atenas. Foi também em redor dessa questão que criou as performances Private: Wear A Mask When You Talk To Me (2016) e Private Song (2017), que chegam, respectivamente, quinta e sexta-feira ao Auditório de Serralves e ao Teatro Nacional São João (TNSJ), num programa duplo organizado por Serralves em colaboração com o São João. Em ambas, Bachzetsis explora configurações de género culturalmente inteligíveis e padrões sexuais, nomeadamente através do gesto enquanto matéria social que codifica, reproduz e naturaliza comportamentos ligados às identidades e expressões de género. A investigação foi coadjuvada por Paul B. Preciado, influente pensador na área dos estudos de género.
“Diria que há dois traços comuns nestas peças”, introduz a coreógrafa. Um tem a ver com “a questão cultural do gesto”, iluminada pelo trabalho da artista e fotógrafa feminista Marianne Wex, em particular pelo livro Let’s Take Back Our Space (1979), uma espécie de relatório visual sobre as “tipologias das posturas masculinas e femininas e como o corpo se comporta em espaços públicos em determinadas situações”, explica Bachzetsis. “Wex acredita que vários tipos de gestos e posturas resultam das estruturas patriarcais – por exemplo, como o corpo masculino se expande mais em público do que o feminino.” O outro elemento – presente com maior fôlego em Private Song, apresentado no TNSJ em estreia nacional – é o rebético, música popular grega intimamente ligada à Guerra da Ásia Menor (1919-1922), que originou uma crise de refugiados entre a Grécia e a Turquia.
“Esta música fala sobre a perda da pátria e a impossibilidade do amor.” É também uma expressão cultural conectada a um certo tipo de masculinidade, em que há “funções separadas” para homens e mulheres, tanto nas canções como nas danças que lhe estão associadas. Há muito que Alexandra Bachzetsis queria pegar neste assunto, um family affair. “O facto de ser de origem grega mas ter crescido longe da cultura grega fez com que o rebético fosse, para mim, simultaneamente um caso de amor e um tabu”, revela. “Foi sempre muito celebrado na minha família grega e acho que enformou bastante a minha fisicalidade, mas nunca tinha trabalhado com isso porque me parecia demasiado pessoal.”
O gatilho foi o convite para participar na Documenta 14, que aconteceu este ano entre Kassel e Atenas, estreando Private Song no Teatro Municipal de Pireu, onde, nos anos 20, viveram a prazo vários refugiados da guerra. Com o público em cima do palco, de frente para um auditório vazio, a coreógrafa quis estabelecer uma ligação com a actual crise dos refugiados, mas também criar um espelho da “solidão e do vazio” narrados no rebético.
Apesar de os espectáculos poderem ser vistos como um díptico, Bachzetsis faz questão de sublinhar as diferenças. “Em Private: Wear A Mask When You Talk To Me, que é um solo, muitas das questões têm a ver como o corpo masculino se impõe perante o feminino, e como o corpo andrógino se compõe. Quis fazer uma continuação disto em Private Song, performando a masculinidade com outras pessoas, mas tendo em conta que esta peça tem mais a ver com saltos entre diferentes culturas.”
O solo, que passou em 2016 pelo Maria Matos, parece tentar incorporar a teoria da filósofa Judith Butler de que “o género é a estilização repetida do corpo, um conjunto de actos repetidos num quadro regulador altamente rígido” (excerto do livro Problemas de Género). Bachzetsis assume a influência, assinalando também as citações que faz de coreógrafos como Trisha Brown e figuras da pop como Michael Jackson, para ela “um dos corpos mais andróginos” inscritos na memória colectiva. Contudo, a coreógrafa diz estar menos interessada “em análises de modificações de género” e mais interessada “na liberdade do sujeito em transitar no espaço, no tempo, nos corpos, nas práticas".
Para Bachzetsis, isto é também uma tentativa de “desaprender códigos corporais” e entrar num auto-confronto. “Exploro a masculinidade do meu corpo porque isso também existe nas mulheres”, afirma. Em Private Song, o “treino foi desenvolver a masculinidade a partir de corpos masculinos e femininos”, juntamente com os intérpretes Thibault Lac e Sotiris Vasiliou. “Acho que isso pode ser tão doloroso para homens como para mulheres pois estás a impor algo.”