Yasmine Hamdan, pop libanesa do pós-guerra

A cantora apresenta esta quarta-feira no Teatro da Trindade, em Lisboa, o diálogo crítico que vem mantendo com a sua região.

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FLAVIEN PRIOREAU

Apesar de partilharem o apelido Hamdan, Yasmine e Zeid não estavam ligados por qualquer laço de sangue. Aquilo que os uniu na Beirute dos anos 90 foi um ímpeto de rebeldia que havia de concretizar-se num duo, os Soapkills, que se inspirava na tradição musical do mundo árabe mas a ensopava de uma sonoridade electrónica herdeira do trip-hop e de outras correntes chegadas das discotecas de Londres. Os Soapkills rapidamente se tornariam uma das grandes referências de modernidade num Líbano a reerguer-se do pós-guerra, a braços com uma absoluta falta de condições – “não havia meios materiais, estruturas, salas de espectáculos, músicos ou sequer uma cultura de ir a concertos”, resume a cantora Yasmine Hamdan, que esta quarta-feira se apresenta a solo no Teatro da Trindade, em Lisboa, integrada no Ciclo Mundos, parceria do Festival Músicas do Mundo (Sines) com o INATEL.

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Apesar de partilharem o apelido Hamdan, Yasmine e Zeid não estavam ligados por qualquer laço de sangue. Aquilo que os uniu na Beirute dos anos 90 foi um ímpeto de rebeldia que havia de concretizar-se num duo, os Soapkills, que se inspirava na tradição musical do mundo árabe mas a ensopava de uma sonoridade electrónica herdeira do trip-hop e de outras correntes chegadas das discotecas de Londres. Os Soapkills rapidamente se tornariam uma das grandes referências de modernidade num Líbano a reerguer-se do pós-guerra, a braços com uma absoluta falta de condições – “não havia meios materiais, estruturas, salas de espectáculos, músicos ou sequer uma cultura de ir a concertos”, resume a cantora Yasmine Hamdan, que esta quarta-feira se apresenta a solo no Teatro da Trindade, em Lisboa, integrada no Ciclo Mundos, parceria do Festival Músicas do Mundo (Sines) com o INATEL.

Na época em que os Soapkills surgiram, a interpretação muito particular que faziam daquilo que podia ser a música popular árabe não lhes facilitava propriamente a vida. Eram frequentamente abordados por gente que lhes dizia que aquilo não era música árabe, viam as rádios que passavam música com uma sonoridade próxima da sua fecharem-lhes as portas por não cantarem em inglês – até para a contemporaneidade oficial não serviam, uma vez que tinha de ser importada. “O facto de não poderem colocar-nos numa prateleira tornava-nos subversivos”, recorda. “E eu também era subversiva porque tinha uma atitude um pouco agressiva. Pode chamar-se a isso feminismo, mas não creio que o fosse, porque estava a lutar pelos meus próprios direitos, estava pronta para tudo.”

À pressão social juntava-se a pressão familiar de uma mãe que queria ver a filha numa situação segura. Como não acontecia, Yasmine era simplesmente “a louca” da família. Mas o facto de haver tantas forças contrárias ao que os Soapkills então faziam não só não os deteve como lhes deu um impulso ainda maior. A parceria, com uma penetração cada vez maior em território europeu, estendeu-se até à edição do álbum Enta Fen, em 2005. Yasmine, casada com o cineasta palestiniano Elia Suleiman, mudou-se depois para Paris. “Saí do Líbano porque não conseguia projectar-me naquele lugar e queria um mundo maior”, justifica. “Tinha planos para mim que queria cumprir e queria estar perto da indústria musical, trabalhar com músicos e produtores, desenvolver-me enquanto artista.”

O seu primeiro encontro dar-se-ia com o músico francês Mirwais, com o qual gravou o álbum Arabology, sob a designação Y.A.S., numa clara tentativa de plantar uma ideia de música electrónica com travo árabe na cena europeia. Seria, ainda assim, a sua colaboração com Marc Collin, dos Nouvelle Vague, a dar o derradeiro impulso para uma carreira a solo (menos dependente de computadores) que a transformou num nome sonante no circuito da dita world music – sobretudo depois da influente editora belga Crammed Discs relançar Ya Nass em 2013.

Diálogo com o Médio Oriente

Yasmine Hamdan já tinha começado a dar os primeiros passos na música quando teve uma epifania pessoal ao escutar a cantora síria-egípcia Asmahan. Para alguém da “geração pós-guerra” e, por isso mesmo, “com uma relação complicada com o passado, porque foi tudo destruído e estragado pelo conflito”, reconhecer na voz de Asmahan uma canção que costumava ouvir cantar pela voz do avô fê-la compreender a existência de um lugar para a memória, um lugar para se recolher em busca de respostas relacionadas com a sua identidade e as suas origens. “Também me apercebi de que esta é a parte árabe de que gosto em mim e que me faz ter orgulho daquele lugar, daquela música, daquelas pessoas e daquela arte”, diz. “Gosto de estar rodeada dessa beleza.”

Embora o seu universo musical seja feito de muitas outras referências, Asmahan constitui uma coordenada fundamental para perceber a música que Yasmine gravou em Ya Nass e em Al Jamilat (2017). Os seus dois álbuns, diz, mantêm vivo “um diálogo com o mundo árabe, o Médio Oriente e o Líbano”, independentemente do estado da sua relação com a região a cada momento. Daí que tenha optado por cantar em árabe – “dava um sentido de missão e permitia-me fazer algo social, político e artístico em simultâneo”, argumenta. E exemplifica com o questionamento constante sobre a condição feminina que transporta para as canções. Al Jamilat, o título do novo disco, reporta-se aliás a um poema de Mahmoud Darwish que Hamdan resume como “uma descrição muito bonita da feminilidade e das suas contradições e imperfeições”.

Escrito a partir das notas que foi tirando ao longo dos últimos anos – a maioria inspirada por conversas que teve com taxistas em Beirute –, Al Jamilat reflecte essas considerações sobre o país tanto quanto veicula posições e ideias de Yasmine atribuídas às personagens femininas com que foi povoando as canções. Em Douss, por exemplo, estabelece uma relação com a Primavera Árabe, ainda que o centro do tema seja o desespero que confessa sentir com “a máfia que manda [na região], eventualmente eleita em eleições que não são mais do que uma piada, e que usa a religião para aceder a toda a riqueza do país”. “As pessoas que estão hoje no poder”, desabafa, “são as mesmas que fizeram a guerra durante 15 anos [1975-1990]": "Sinto raiva, mas expresso-a de uma forma cândida.” Porque não é a frustração que lhe corre nas veias; mas sim a esperança de que, com o tempo, tudo possa mudar.