As duas Espanhas
Os catalães têm direito a decidir, mas também merecem que, antes disso, se ponha em cima da mesa uma Espanha parecida com as suas gentes, onde ficar compense mais do que ir embora
Aprendi catalão pela mesma razão pela qual aprendi português: arranjei uma namorada que sonhava, pensava e falava nessa língua. Sempre estarei muito agradecido ao Governo Regional Valenciano por ter proporcionado à minha geração oportunidades de que os meus pais, migrantes, nunca usufruíram. Desde muito novo tive acesso à televisão, ao ensino, à informação, à leitura e à música em catalão — da mesma maneira que, desde os 25 anos, tive acesso à televisão, ao ensino, à informação, à leitura e à música em português. Porém, apesar da importância do suporte institucional, a vontade pessoal é insubstituível. Não há nada mais poderoso do que o mundo que se cria quando duas pessoas decidem aproximar-se, conviver, e deixar-se contaminar uma pela outra.
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Aprendi catalão pela mesma razão pela qual aprendi português: arranjei uma namorada que sonhava, pensava e falava nessa língua. Sempre estarei muito agradecido ao Governo Regional Valenciano por ter proporcionado à minha geração oportunidades de que os meus pais, migrantes, nunca usufruíram. Desde muito novo tive acesso à televisão, ao ensino, à informação, à leitura e à música em catalão — da mesma maneira que, desde os 25 anos, tive acesso à televisão, ao ensino, à informação, à leitura e à música em português. Porém, apesar da importância do suporte institucional, a vontade pessoal é insubstituível. Não há nada mais poderoso do que o mundo que se cria quando duas pessoas decidem aproximar-se, conviver, e deixar-se contaminar uma pela outra.
No entanto, o convívio na minha terra está seriamente ameaçado porque assim o está em todo o país. Não se trata de uma circunstância recente nem se reduz à actual situação na Catalunha. Espanha vive numa profunda crise de Estado, visível desde o início da crise económica, e cujos principais sintomas são o movimento 15M, a abdicação do Rei, a emergência do Podemos e os inúmeros activistas que passaram da rua às instituições (como é o caso de Ada Colau, antiga porta-voz da Plataforma de Afectados por la Hipoteca e hoje presidente da Câmara de Barcelona). Um clima de um país insatisfeito consigo próprio e que se sintetiza numa frase lançada durante o movimento dos indignados: “No es la izquierda contra la derecha, sino de los de arriba como los de abajo.”
Perante este cenário, e como é obvio, os “de acima” reagiram, e fizeram-no com base nas suas características, objectivos e meios. “Os de acima” são poucos, mas variados (com uma preocupante promiscuidade entre o poder económico e o poder político), têm muita força (podem erradicar muitos lugares de trabalho ou legislar para que isso aconteça), partilham os mesmos objectivos (que não se questione quem produz o quê, para quem e como) e contam com um elemento poderoso (os principais meios de comunicação, asfixiados pela crise, onde mandam mais os accionistas do que o jornalismo). Esta última circunstância é especialmente visível no actual conflito com a Catalunha, onde a abundância de títulos simplistas e capas incendiárias leva a duas dinâmicas muito evidentes.
A primeira é a tentativa de neutralizar o quê (o direito a decidir), deslegitimando o quem (a sociedade que o pede). Está a ser muito doloroso ver como os principais meios de comunicação acusam os catalães de estarem habituados a “cuspir sobre os espanhóis”, as escolas catalãs de fazerem lavagem cerebral aos miúdos, a Catalunha de estar a travar o crescimento económico, os seus políticos de serem corruptos e os Mossos d'Esquadra de serem o braço executivo da ilegalidade. A segunda, consequência assustadora da primeira, é a materialização do “nós” e do “eles”, o fantasma das “duas Espanhas” magistralmente ilustrado nos versos de António Machado: “Ya hay un español que quiere vivir y a vivir empieza, entre una España que muere y outra España que bosteza.”
Creio que a Espanha que morre é a da submissão. A que afirma que celebrar o referendo é ilegal (enquanto aprova leis express para que as empresas possam sair rapidamente da Catalunha). A que olha para a banca para lhe perguntar se uma Catalunha independente é viável (em vez de lhe reclamar o que nos tirou durante a crise). A que pretende que acreditemos que o Rei condena o terrorismo (enquanto faz negócios com as armas). A Espanha que nasce, julgo, é a da coragem. A que se manifesta sem bandeiras para pedir diálogo (em vez de se esconder atrás delas para insultar). A que olha para a Europa e, como na crise dos refugiados, lhe pergunta: “Onde estás?" A que tenta unir os seus cidadãos num projecto comum (em vez de enfrentá-los entre si).
O realmente trágico é que, tal como está a ser formulado o debate, nada impede que o pior da antiga Espanha se venha a reproduzir na Nova Catalunha. Os catalães têm direito a decidir, mas também merecem que, antes disso, se ponha em cima da mesa uma Espanha parecida com as suas gentes, onde ficar compense mais do que ir embora. A Catalunha não cabe na Espanha que morre, mas sem a Catalunha não é possível imaginar essa Espanha que muitos de nós queremos ver nascer.