Como o aumento da precariedade está a mudar o discurso da UE

Desde 2008 houve mais de 400 mudanças nas leis laborais nos países da União Europeia. Mas quatro em cada cinco dos novos empregos são a tempo parcial ou a prazo. A desregulação das leis parece ter aumentado a precariedade. E isso mudou a política de Bruxelas.

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BCE, Comissão Europeia e FMI mudaram o discurso: é como se a troika de 2017 criticasse a troika de 2011 Nuno Ferreira Santos (arquivo)

De eleição para eleição, na Europa fala-se do mesmo: trabalho. Seja da precariedade crescente, seja da ausência de um futuro mais promissor, o velho dossier laboral está no topo das preocupações políticas europeias. Foi assim nas eleições francesas, tinha sido assim no referendo do “Brexit”, voltou a ser assim na Alemanha. Pode não ser a causa principal, mas a precariedade tem um papel na Europa que se confronta com o populismo. E ganhou o primeiro plano nas ruas francesas, onde a lei laboral de Macron enfrenta a oposição de parte do eleitorado que o elegeu.

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De eleição para eleição, na Europa fala-se do mesmo: trabalho. Seja da precariedade crescente, seja da ausência de um futuro mais promissor, o velho dossier laboral está no topo das preocupações políticas europeias. Foi assim nas eleições francesas, tinha sido assim no referendo do “Brexit”, voltou a ser assim na Alemanha. Pode não ser a causa principal, mas a precariedade tem um papel na Europa que se confronta com o populismo. E ganhou o primeiro plano nas ruas francesas, onde a lei laboral de Macron enfrenta a oposição de parte do eleitorado que o elegeu.

O problema é tão grave quanto parece. A União Europeia atravessa o seu melhor desempenho económico da última década. Desde 2012, foram criados cinco milhões e meio de empregos. Mas quatro em cada cinco destes empregos, segundo revela o Eurostat (o gabinete de estatísticas da UE), são temporários, ou part-time. São, sobretudo, mal pagos. Do lado dos trabalhadores afectados, as estatísticas também são claras: dois terços gostariam de ter empregos permanentes, full-time, é o que revela o mais recente relatório da UE sobre o mercado de trabalho.  

As instituições que, há poucos anos, defendiam "reformas estruturais" da legislação laboral estão agora preocupadas com o efeito da precarização. O BCE, a Comissão Europeia e o FMI — a antiga troika — mudaram o seu discurso. Agora, é como se a troika de 2017 criticasse a troika de 2011. 

Quase metade dos empregados com menos de 25 anos têm contratos temporários, e em Espanha este valor é de mais de 70%. "Isso é muito problemático", diz Marianne Thyssen, comissária da UE para o Emprego e Assuntos Sociais.

A comissária recebe-nos no seu gabinete, no edifício Berlaymont, em Bruxelas. No mesmo piso está um dos outros governantes europeus, Valdis Dombrovskis, o letão que chefia a discussão económica em torno do euro. Historicamente, os assuntos laborais foram tratados de maneira bastante diferente entre estes dois eixos em Bruxelas. Hoje, a autonomia da comissária Thyssen parece ser maior. Ao longo de mais de uma hora de conversa, a democrata-cristã belga nem por uma vez se solidariza com a política seguida no passado pela comissão liderada por Durão Barroso. "Eu não posso ser responsabilizada por uma política que não é minha", esclarece.

Para Thyssen, mais do que retirar a protecção das leis laborais, a prioridade é a precarização. "Isso impede os jovens de deixar a casa de seus pais, uma vez que, com vínculos precários, eles não podem comprar uma casa ou tomar decisões para o seu futuro, e isso enfraquece toda a economia", adverte a comissária belga. "Quanto mais precários são os empregos, menos produtiva é a economia", afirma Thyssen.

Não é a única. Encontramo-nos, em França, com outro especialista, Olivier Blanchard. "Todas essas formas de trabalho inseguras são extremamente caras — tanto para os afectados quanto para a sociedade como um todo", garante-nos o professor emérito da universidade norte-americana MIT, que foi economista-chefe do Fundo Monetário Internacional entre 2008 e 2015.

Mas por que razão a insegurança no trabalho atingiu esses níveis? E o que deve acontecer para se parar a tendência? O grupo de jornalistas Investigate Europe colocou essas questões e as respostas são bastante surpreendentes.

O comissário que antecedeu Thyssen à frente da pasta do Emprego, o húngaro Laszlo Andor, também é claro ao fazer o seu balanço. A promessa de que melhores empregos e menos "segmentação" (divisão entre precários e empregados sem termo) viriam caso as leis laborais fossem desregulamentadas é, "no geral", uma política que "não funcionou". Para Andor, que é economista, também "há pouca, se é que há alguma, relação" entre uma menor protecção dos direitos laborais e o desejado crescimento económico. Ou seja, o que Andor está a afirmar é que o objectivo das políticas económicas de Durão Barroso e Oli Rhen era errado. E falhou.

Em Lisboa, entrevistámos o autor da primeira grande alteração nas leis laborais dos últimos anos, o "código do trabalho" de 2003. "Não penso o mesmo que pensava em 2003. A relação entre a desregulação dos mercados de trabalho e o crescimento económico é um erro. Não existe tal relação", explica António Bagão Félix.

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O ex-ministro do Trabalho, no primeiro governo de Durão Barroso, continua a acreditar que "um certo nível de desregulação pode ser positivo", mas o ponto que quer deixar claro é outro: "Tem de haver um limite. Ultrapassar o limite é um risco porque acabamos a desumanizar o mercado de trabalho. A lógica atrás da desregulação considera o mercado de trabalho como um factor negativo, um produtor natural de desemprego. Este é um pensamento ultrapassado, dos anos 70 e 80. Fazia sentido numa era que já não estamos a viver."

Uma nova agenda

Mas a grande "desregulação" das leis do trabalho acabou por vir depois de 2010. À medida que a crise financeira levou muitos países da UE à recessão e causou grandes aumentos de dívida e desemprego, as alterações no direito do trabalho tornaram-se prioritárias para a Comissão Europeia — na época liderada por Barroso.

Olivier Blanchard, que então chefiava a investigação económica do FMI, achou estranho... "As reformas estruturais não foram um grande tema até 2009", lembra. Mas, de repente, tornaram-se "um slogan" ouvido em cada conferência ou discurso. "Havia essa visão de que com sindicatos mais fracos e mais flexibilidade salarial a saída da crise seria mais rápida e isso foi exposto como um credo religioso", lembra Blanchard. E, claro, "essa era uma maneira de os ministros das Finanças e os bancos centrais atirarem o fardo para os outros", ironiza.

O responsável pela pasta da Economia, na Comissão, o finlandês Oli Rehn, pediu aos países atingidos pela crise que encontrassem formas de tornar "os salários flexíveis" e procurassem criar aquilo que é dito de uma forma quase eufemística, "mais incentivos aos desempregados para encontrarem trabalho". Paralelamente, Mario Draghi, chefe do Banco Central, colocou os governos de Espanha e a Itália sob pressão. A fim de recuperar a sua credibilidade, eles deviam "reformar o sistema de negociação de acordos salariais e aprovar acordos individuais ao nível das empresas, a fim de adaptar salários e condições de trabalho aos seus requisitos específicos", escreveu, numa carta ao governo de Roma. O presidente do BCE exigiu a Espanha que tomasse "medidas para reduzir os salários no sector privado" e que permitisse contratos de trabalho "que pagam uma remuneração muito baixa em caso de demissão".

Os responsáveis da Direcção-Geral ECFIN (Economia e Finanças), que dependiam de Oli Rehn, criaram então um "relatório sobre o desenvolvimento do mercado de trabalho", onde explicaram exactamente o que poderiam ser reformas "favoráveis ao emprego". De acordo com o relatório, de 2012, essas reformas deviam: "aumentar a duração máxima dos contratos temporários e aumentar o número máximo de renovações"; "diminuir a cobertura de negociação ou a extensão de acordos colectivos". Uma destas regras é quase uma definição ideológica. A DG ECFIN pretendia obter "uma redução global do poder de negociação de salários pelos sindicatos".

Esta agenda foi particularmente evidente nos países atingidos pela crise como Portugal, Grécia e Roménia. Os funcionários da troika designada pela Comissão, o FMI e o BCE usaram estas regras — em nome dos credores — para fazer mudanças radicais nas leis de trabalho.

Os "memorandos de entendimento" estipulavam que, a partir de então, deveriam ser reduzidas as compensações por desemprego. Foram dificultados os acordos colectivos que tinham sido a norma até então. As novas leis "deram aos empregadores o poder de tomar decisões unilaterais", como a "conversão de contratos a tempo inteiro em contratos de trabalho não padronizados", relatam cientistas sociais da Universidade de Manchester num estudo, sobre a Grécia, que foi financiado ironicamente pela Comissão Europeia. De acordo com o estudo, muitos contratos permanentes foram transformados em contratos de trabalho a termo.

O caso português

Até 2008, cerca de 45% de todos os contratos dos trabalhadores portugueses eram baseados num acordo colectivo aplicável a nível nacional. Seis anos depois, esse número é de apenas 5%.

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Segundo o Livro Verde Sobre as Relações Laborais, de 2016, conhecido este ano, em Portugal 22,6% de todos os contratos de trabalho são a prazo (bem acima dos 14% da média europeia). Para os jovens portugueses com menos de 25 anos, os contratos a prazo são a regra: 67,5% do total (média da UE: 45%). Desde que o emprego está a crescer, ou seja, desde 2014, os contratos a prazo crescem muito mais do que os sem termo.

Segundo dados do Fundo de Compensação do Trabalho, apenas um em cada cinco novos contratos de trabalho é permanente. A mesma proporção se aplica aos contratos de muito curta duração: um em cada cinco dos novos contratos tem um prazo inferior a 60 dias...

Por tudo isso, o primeiro-ministro português, António Costa, afirmou, na abertura da conferência O futuro do trabalho, que "a ideia tanta vez apresentada de que Portugal continuava a ter um mercado de trabalho demasiado rígido e que o aumento de produtividade teria de passar necessariamente pela flexibilização das leis laborais foi um dos dados que pudemos desmentir".

Vieira da Silva, o ministro da pasta, por seu lado, relaciona as mudanças na regulação com o crescimento da precariedade: "Entre 2011 e 2015, assistimos a um pesado processo de desregulação e, principalmente, de individualização das relações laborais em Portugal, em detrimento do diálogo social, da contratação colectiva e de relações laborais equilibradas, com um alargamento significativo do espaço social da chamada precariedade."

Na Roménia, a crise foi o pretexto para uma lei que permitiu que as empresas colocassem empregados com contratos a tempo integral, em tempo parcial. Ao mesmo tempo, o governo aboliu a negociação colectiva. O sistema de negociação colectiva vigente até então e aplicado a 90% de todos os funcionários "foi praticamente destruído", reclama Petru Dandea, secretário-geral da confederação sindical romena. Como consequência, os salários caíram 40%. "Somos pagos como se fossemos um país de pessoas não qualificadas", reclama o sindicalista.

A Comissão Europeia sabia de tudo. Quando o novo governo romeno anunciou, em 2012, que iria facilitar a contratação colectiva, os funcionários do comissário responsável na época, Olli Rehn, vetaram a mudança. "Instamos vivamente as autoridades a garantir que os acordos colectivos nacionais não contenham elementos relacionados aos salários e/ou reverter o progresso alcançado com o Código do Trabalho adoptado em Maio de 2011", escreveram a Bucareste. O governo romeno recuou.

Em Portugal, a Comissão colaborou activamente com o Governo. É o que demonstra o trabalho da cientista política belga Catherine Moury. Um ministro do governo de Passos Coelho garantiu à investigadora, sob anonimato, que a alteração às leis laborais teve um contributo importante da troika: “Por vezes é difícil ter a força política para fazer certas coisas e a troika ajuda a justificá-las. Por exemplo, há certas medidas na revisão da legislação laboral, como a redução das indemnizações por despedimento, que são muito difíceis de discutir com os parceiros sociais e, por isso, é útil haver pressão da troika para as poder implementar. Nós, no governo, concordamos que é necessário fazê-lo mas reconhecemos a dificuldade política.” Este depoimento encontra-se citado no artigo “Portugal, o 'bom aluno' da troika”.

No entanto, a intervenção de Olli Rehn e dos funcionários da DG ECFIN em matérias laborais tão específicas parece violar o artigo 153.º do tratado da UE que assegura que a participação dos órgãos comunitários "não é aplicável às remunerações".

"Re-regulação" laboral

Hoje, Olli Rehn é dirigente do banco central finlandês. Recusou todos os pedidos de entrevista enviados pelo Investigate Europe. O ministro das Finanças dos Países Baixos, Jeroen Dijsselbloem, que como presidente do grupo do euro supervisionou o caminho das "reformas estruturais" na Grécia e em Portugal, também não aceitou ser entrevistado.

Ou seja, hoje, aparentemente, ninguém defende a política seguida na última década. "A regulamentação do mercado de trabalho não tem efeitos estatisticamente significativos sobre a produtividade", confirmou o FMI no seu relatório anual de 2015. Mesmo os economistas da OCDE admitiram no ano passado que há, na mais optimista das hipóteses, "um impacto positivo limitado nos níveis de emprego " gerados pela desregulação. Mas dizer isto é tão válido como dizer que não tem nenhum impacto, afirma o mesmo relatório da OCDE. Um estudo publicado em Maio pelo Instituto Europeu de Sindicatos (ETUI), o grupo de reflexão dos sindicatos da UE, examinou esta questão em oito países, incluindo Espanha, Polónia e Alemanha. Os dados revelam "um resultado muito claro", diz Martin Myant, economista chefe da ETUI. Não houve "nenhuma prova empírica de que a desregulamentação aumentasse o emprego ou reduzisse o desemprego". O que o ETUI conseguiu provar foi que as reformas foram "acompanhadas por um aumento do emprego precário, particularmente nos países onde houve desregulamentação particularmente enérgica" assegura Myant.

Mesmo o presidente do BCE, Mario Draghi, que exortou a Espanha e a Itália a adoptarem restrições salariais e enfraquecerem o poder negocial dos sindicatos, agora está em dúvida. Porque a economia cresce, mas os salários não acompanham esse crescimento. Isso provoca um impasse económico para que Draghi alertou, num discurso histórico, pelo conteúdo, em 27 de Junho: "O comportamento salarial e de preços na área do euro mudou durante a crise", afirmou Draghi. "As reformas estruturais que aumentaram a negociação salarial no nível da empresa podem ter tornado os salários mais flexíveis para baixo, mas não necessariamente para cima", criticou o presidente do BCE em Sintra, no discurso com que abriu o Fórum dos Bancos Centrais.

"A opinião económica é muito lenta a adaptar-se a realidades diferentes", adverte Bagão Félix. "O que sabemos agora é que a inovação é um dos principais motores da produtividade. Mas também que uma excessiva desregulação dos direitos laborais pode ser prejudicial para a produtividade por introduzir um factor, injusto, de assimetria social." Aí, o ex-ministro de Durão Barroso tem uma crítica clara a apontar: "A troika foi longe de mais, aqui."

"Os trabalhos precários não devem tornar-se a norma", é a opinião de Marianne Thyssen, comissária, que quer marcar uma diferença no discurso oficial europeu. Um instrumento possível, avança, pode ser o aumento significativo das contribuições para a segurança social dos empregadores que celebrem contratos de duração limitada. Essa é, também, uma das propostas do Governo português. A "geringonça" é, aliás, uma consequência deste tema. O trabalho é, muito provavelmente, o assunto que mais influiu para que os partidos da esquerda portuguesa celebrassem o seu primeiro acordo de sempre. E a "re-regulação" laboral pode vir a ser o grande tema — de consenso ou de fractura entre PS, PCP e BE — desta segunda metade da legislatura. com Crina Boros, Elisa Simantke, IngeborgEliassen, Leila Miñano, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore e Wojciech Ciesla

Investigate Europe é um projecto iniciado em Setembro de 2016, que junta nove jornalistas de oito países europeus, que o PÚBLICO integra. Financiado pelas fundações Hans Böckler Stiftung (Düsseldorf), Stiftung Hübner und Kennedy (Kassel), Fritt Ord (Oslo), Rudolf-Augstein-Stiftung (Hamburgo) e Open Society Initiative for Europe (Barcelona), destina-se a trabalhar temas de interesse europeu. A organização não-governamental belga Journalism Fund, destinada a apoiar projectos jornalísticos plurinacionais, é a entidade responsável pela gestão financeira e administrativa deste projecto.