O atlas literário de Daniel Mordzinski, o "fotógrafo de escritores"
Os escritores são como personagens para Daniel Mordzinski, 57 anos, 40 de fotografia. A exposição Objectivo Mordzinski, que fica até Dezembro na Casa da América Latina, em Lisboa, mostra 200 retratos.
Como se conta uma história? Por exemplo, escolhendo não a contar e assumindo em vez do papel do contador de histórias a pele de leitor. “Seria pretensioso afirmar que elejo os escritores. O que confere muita liberdade ao meu trabalho é uma soma de casualidades, causalidades”, diz Daniel Mordzinski num castelhano acentuado pela intenção de prender quem o ouve. “Uma vez, em Paris, fui fotografar Paul Auster. Era um daqueles encontros em hotéis de cinco estrelas em que entra um jornalista a cada 20 minutos. Chegou a minha vez e fiquei subjugado por aquela personagem, aquela voz que falava um francês impecável; ele percebeu que não estava em frente de um fotógrafo, mas de um leitor, e, num momento um pouco incómodo, disse-me: ‘desculpe, a conversa está muito interessante, mas...’ e mostrou-me o relógio. Faltavam cinco minutos e continuámos a falar. Não fiz fotos.” Dois anos, depois voltaram a cruzar-se. Auster tinha esquecido todos os encontros daquele dia em Paris, mas lembrava-se do fotógrafo que não lhe fizera uma única fotografia. “Graças a essa não-foto da primeira vez pude fazer fotos únicas dele na cidade literária de Saint-Malo”, conta o fotógrafo argentino ao PÚBLICO no momento em que se prendem às paredes da Casa da América Latina, em Lisboa, as últimas imagens da exposição Objectivo Mordzinski, um verdadeiro atlas da intimidade, resultado de um trabalho de 40 anos e da sua relação com escritores de todo o mundo, sobretudo ibero-americanos.
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Como se conta uma história? Por exemplo, escolhendo não a contar e assumindo em vez do papel do contador de histórias a pele de leitor. “Seria pretensioso afirmar que elejo os escritores. O que confere muita liberdade ao meu trabalho é uma soma de casualidades, causalidades”, diz Daniel Mordzinski num castelhano acentuado pela intenção de prender quem o ouve. “Uma vez, em Paris, fui fotografar Paul Auster. Era um daqueles encontros em hotéis de cinco estrelas em que entra um jornalista a cada 20 minutos. Chegou a minha vez e fiquei subjugado por aquela personagem, aquela voz que falava um francês impecável; ele percebeu que não estava em frente de um fotógrafo, mas de um leitor, e, num momento um pouco incómodo, disse-me: ‘desculpe, a conversa está muito interessante, mas...’ e mostrou-me o relógio. Faltavam cinco minutos e continuámos a falar. Não fiz fotos.” Dois anos, depois voltaram a cruzar-se. Auster tinha esquecido todos os encontros daquele dia em Paris, mas lembrava-se do fotógrafo que não lhe fizera uma única fotografia. “Graças a essa não-foto da primeira vez pude fazer fotos únicas dele na cidade literária de Saint-Malo”, conta o fotógrafo argentino ao PÚBLICO no momento em que se prendem às paredes da Casa da América Latina, em Lisboa, as últimas imagens da exposição Objectivo Mordzinski, um verdadeiro atlas da intimidade, resultado de um trabalho de 40 anos e da sua relação com escritores de todo o mundo, sobretudo ibero-americanos.
Paul Auster não está entre os escolhidos no conjunto que Mordzinski trouxe para mostrar na capital portuguesa. São 200 retratos, dos quais 70 são de autores portugueses (Saramago, Agustina, Lobo Antunes, Eduardo Lourenço...). “O espaço é limitado e trouxe imagens que penso que fazem sentido aqui e que, entre elas, possam resultar numa narrativa harmoniosa. Demasiadas fotos matam as fotos”, justifica o fotógrafo, que construiu uma espécie de Rayuela – o jogo da macaca que deu título ao celebre romance de Julio Cortázar – onde se agrupam os portugueses. Na sala contígua está o que se pode chamar de coração da exposição, e o princípio de tudo. Uma figura masculina de rosto ao alto, ponto iluminado em fundo negro; o homem cego na foto a preto e branco é Jorge Luis Borges, e esta é a primeira fotografia de um escritor da vida de Mordzinski. Foi tirada em 1978, era ele estudante na Escola Panamericana de Arte e trabalhava como estagiário num filme sobre o escritor argentino. Confessou-lhe a sua admiração e ousou pedir-lhe para o fotografar. Entretanto instalava-se a ditadura militar na Argentina e Daniel Mordzinski mudava-se para Paris. Ainda não tinha 20 anos.
Alguém que leia
A fotografia de Daniel Mordzinski tornou-se um dos mais célebres retratos de Jorge Luis Borges. Era a homenagem de um leitor, e seria sempre assim nas fotografias que se seguiram, com o fotógrafo argentino sempre à procura de captar qualquer coisa da essência de um escritor.
Objectivo Mordzinski é uma exposição antológica. No princípio houve Borges e depois é segui-lo. O olhar que agora percorre as paredes é o de Mordzinski sobre a sua própria obra. O que vê ele agora quando olha cada um daqueles retratos, sabendo dos detalhes apagados, editados, invisíveis, do caminho que levou a cada um deles? “Gosto que cada um chegue a uma história a partir da imagem que fiz.”
Em cada foto, há um nome e uma data. “Cheguei à fotografia por amor a literatura. Em criança gostava muito que me contassem histórias até que comecei a contá-las eu. Quando penso numa exposição ou num livro, quando faço uma foto, sugiro ao observador também uma história. Essa história às vezes tem uma leitura cronológica, como aqui.” A seguir a Borges, estão os primeiros retratos. Julio Cortázar, Álvaro Mutis, Francisco Coloane, Ernesto Sábato, Adolfo Bioy Casares, Juan José Saer, Eduardo Galeano, José Donoso, Guillermo Cabrera Infante, Mario Benedetti, Claribel Alegría, Camilo José Cela e... "O meu poeta preferido”, aponta Mordzinski, parando em frente a outro rosto de um homem, o olho direito dele fixo na objectiva, meio de perfil, enquadrado por um postigo numa porta de madeira. O resto da cara fica na sombra, numa nostalgia atenuada por uma árvore a insinuar sol naquela imagem a preto e branco como todas as anteriores. É Roberto Juarroz. “É um poeta total, é um poeta que me acompanha quando estou feliz, quando estou triste, quando estou apaixonado; é um poeta que sabe ver o que muitos não sabem traduzir, que me ensinou muito com um só verso – 'la luz, toda la luz no alcanza para ver en el fondo la imagen que aparece cuando nadie mira...'. É preciso mais, mais do que fotografia, mais do que literatura, que nada disso vale se não há alguém que olhe, alguém que leia.”
Mordzinski fala de Juarroz como de um encontro de dois universos que se entendem e isso é o principio de outra história, a daquela fotografia, independentemente da que cada pessoa inventar para si. “Fotografei-o muitas vezes, mas esta foi a primeira vez que o fiz na sua casa, em Temperley. Foi em 1993. Eu vivia em Paris, e consegui ir visitá-lo. Foi numa época muito antes da tecnologia, um tempo de pombos-correio e cartas de amor. Quando chego, toco à campainha e vejo que se abre o postigo, ele olha quem ali está. E eu pensei de imediato que tinha a foto, só tinha de a fazer. Entrei, fiz muitas outras fotos, com livros, com gatos, mas sabia que queria a minha primeira imagem. Ao sair, e como ele era muito reservado, de uma timidez que nos intimida, pedi-lhe para a fazer esta foto. Não o pus no centro, mas num canto, porque os poetas vivem assim quase acantonados.”
Dois Nobel e um apagão
Os olhos de Daniel Mordzinski, a quem chamam “o fotógrafo de escritores”, sorriem para a foto e o corpo faz uma pausa meio religiosa, meio de veneração antes de avançar. Nenhuma das imagens parece evidente, e em nenhuma se sente um despropósito. “A linha é difícil, tenho medo de cair no ridículo, de ridicularizar alguém”, confessa sobre a permanente fuga ao óbvio com que tem gerido o seu trabalho. É um encenador de gente real, com universos mais ou menos ficcionados e uma imagem construída junto de leitores fiéis. “A minha formação e a minha experiência são de jornalista. Tenho de decidir rapidamente e assumo uma espécie de compromisso com a verdade”, ri outra vez. É sempre uma coisa a dois, ele e a máquina. Não há o tempo nem a estratégia dos fotógrafos de estúdio. E há a luz. Como a que entra no quarto onde está Gabriel García Márquez, sentado de perfil na cama em frente a uma janela que não se vê, mas que está ali. É de lá que tudo se ilumina. A foto está colocada ao lado de outra de Mario Vargas Llosa. A data de uma é a data da outra. Um lado-a-lado tão real quanto sublinhado na encenação daquela sala. Ficou famosa a relação de irmandade, primeiro, e de grande rivalidade, depois, entre os dois Nobel da Literatura, o colombiano e o peruano. E ali estão. “Estas duas fotos estão aqui porque a história delas tem tudo a ver com literatura”, precisa Mordzinski.
Segue-se uma narrativa cheia de peripécias. 28 de Janeiro de 2010, Festival Literário de Cartagena das Índias. Ao pequeno-almoço, no hotel, Mordzinski encontrou Vargas Llosa, que já tinha fotografado várias vezes, e propôs-lhe fazer-lhe uma "fotinski". São fotos um pouco travessas, sempre respeitosas”, conta, mencionando o inevitável pacto de confiança (ou de cavalheiros) que lhes está implícito. No mesmo dia, recebe um telefonema de Mercedes Barcha, mulher de Gabriel García Márquez. Pedia-lhe que o fotografasse à hora combinada com Vargas Llosa. Seguiram-se rábulas que tiveram como resultado as duas imagens ali expostas e muitas outras que estão guardadas, sobretudo de García Márquez, a quem o fotógrafo tratava por "Don Gabriel". “Achei um milagre da Colômbia, num só dia ia fotografar Vargas Llosa e García Márquez”, ri de novo ainda. Llosa numa cama, a escrever iluminado por uma vela. Márquez a olhar a janela no seu quarto de dormir, indiciando uma tremenda solidão. Era exactamente assim que estava quando Daniel o foi encontrar no quarto, camisa de gola amarela num fato branco, sentado muito direito na sua cama. “É um homem na sua solidão, em fim de vida, pouco espaço à frente, muito espaço atrás, sombreado.”
Fotos que só foram possíveis, diz, por estar habituado ao ritmo do jornalismo, por ser essa a sua escola. E por confiar no instinto. “Despedi-me dele, disse que queria falar com Mercedes. Senti que a imagem era tão forte que queria escapar, outra vez o medo, desta vez de que se dissesse alguma coisa mais a foto desaparecesse." Mas perde-se na casa, não encontra Mercedes, e quando volta ao quarto Gabo estava a dormir, "recostado na cama, a porta semi-cerrada, parecia morto”. "Fiquei muito impressionado. E o que fiz? A foto.”
Não foi publicada. Só depois da morte de García Márquez ficou conhecida. Está ali, no seu computador. Não se perdeu no dia em que lhe apeteceu gritar, chorar... o dia em que por engano o Le Monde destruiu por engano todo o arquivo de Daniel Mordzinski. Valeu-lhe o facto de ao longo dos anos ter oferecido muitas fotos aos seus modelos. Reconstituiu parte do seu arquivo assim, digitalizando as imagens que lhe iam sendo enviadas. Faz quase silêncio quando se fala disso. Não gosta que falem dele por isso, por ter sido vítima. “Tive pedidos de entrevistas de todo o mundo, a CNN quis entrevistar-me. Onde tinha estado a CNN em todas as minhas exposições? Recusei, quis evitar o ruído e seguir com a minha vida. Quando deixei de chorar e de me deprimir perguntei-me o que fazer para construir a partir dessa ausência.”
A resposta a essa pergunta é esta exposição que já teve várias paragens e fica em Lisboa até 29 de Dezembro.