Turismo está a reduzir opções de realojamento de sem-abrigo
Por falta de vagas nas estruturas de alojamento temporário, técnicos de Porto e Lisboa recorrem a quartos de casas, de pensões, de hospedarias de baixo custo, que se estão a reconverter em hostels e guest houses
A senhoria enviuvou. Os filhos querem fazer as partilhas. Até ao final do ano, ela vai vender o prédio. Jorge Augusto e os outros hóspedes vão ter de arranjar nova morada. “Alugar um quarto vai ser complicado. As pensões estão a fechar. Está tudo a virar hostel ou alojamento local. As rendas são o dobro ou o triplo”, queixa-se o homem, de 47 anos, corpo pesado, voz cansada.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A senhoria enviuvou. Os filhos querem fazer as partilhas. Até ao final do ano, ela vai vender o prédio. Jorge Augusto e os outros hóspedes vão ter de arranjar nova morada. “Alugar um quarto vai ser complicado. As pensões estão a fechar. Está tudo a virar hostel ou alojamento local. As rendas são o dobro ou o triplo”, queixa-se o homem, de 47 anos, corpo pesado, voz cansada.
Por falta de vagas nas estruturas de alojamento temporário, há anos que técnicos de Porto e Lisboa recorrem a quartos de casas, de pensões, de hospedarias e de residenciais de baixo custo para alojar pessoas em situação de sem abrigo. Com o aumento do fluxo de turistas, tudo se complicou.
“Pelo perfil das pessoas que acompanhamos, já não era fácil encontrar um quarto”, admite a educadora social Márcia David, da equipa de rua dos Médicos do Mundo. Somam rupturas afectivas, amiúde associadas a problemas de saúde mental, dependência de bebidas alcoólicas ou de substâncias ilícitas. Alguns alojadores têm características para os receber, outros nem lhes os querem ver.
“O técnico dá a cara, ajuda a abrir a porta”, explica a enfermeira Virgínia Silva, coordenadora de uma das equipas de rua da SAOM - Serviços de Assistência Organizações de Maria. Está longe de ser a solução ideal para muitos dos que acabam de sair da rua. “Não têm vigilância. Temos utentes que continuam a dormir no chão. Alguns não tomam banho, o dono da pensão fica chateado.” É a solução possível para esses e para muitos outros, que já têm autonomia para estar numa casa.
Instituições de primeira linha têm uma lista de hospedarias/pensões a que recorrem quando alguém está prestes a ficar na rua ou quer sair da rua e não há vaga em albergue, comunidade de inserção, centro de alojamento social. Cada técnico vai actualizando a sua. “Com o aumento do turismo, a lista foi afunilando”, torna Virgínia Silva.
Na semana antes de falar com o PÚBLICO, Márcia David correra a lista diversas vezes. “Liguei para mais de 40 hospedarias e estavam todas cheias”, afiança. Um dos sem-abrigo aceitara sair da rua e pagar metade da renda do quarto. “Foi feito um trabalho prévio para que percebesse que era importante sair da rua, porque o processo [de desestrutura] é tão fulminante que valorizava outras coisas, como consumir. Tinha chegado àquele ponto e não havia alojamento.”
Era já sexta-feira quando, por fim, Márcia conseguiu uma vaga. De repente, recebeu um telefonema. “O alojador disse-me que pedia imensa desculpa, mas já não podia alojar. As pessoas que lá estavam tinham de sair todas até ao final do mês, porque o prédio ia ser vendido.” Não foi para casa descansada. Durante o fim-de-semana, continuou a telefonar. “Segunda-feira, corri tudo a pé”, diz. “Andei aí a bater de porta em porta. Continuava tudo cheio. Entretanto, uma colega ligou-me a dizer que tinham surgido duas vagas. Fui buscar o utente e integrei-o na Casa da Rua”, a comunidade de inserção da Santa Casa da Misericórdia do Porto.
A mudança é drástica. “Há uns anos, conseguia-se negociar um quarto para 150, 175 euros por mês”, recorda aquela técnica. “Havia a 200 euros, mas eram quartos com condições razoáveis. Agora, não há negociação. Anda tudo nos 300 euros – 200 euros já só para quartos sem condições.”
Histórias semelhantes são contadas por outros membros de equipas de rua e de redes locais de intervenção social. O número de camas nas estruturas de alojamento temporário mantém-se (do centro de emergência anunciado pela Câmara do Porto há mais de um ano, nem sinal) e a lista de pensões e afins parece não parar de encolher.
A antiga Pensão Paladar, por exemplo, desapareceu. A antiga Hospedaria 31 de Janeiro ainda está à venda, mas já mudou o nome para Guest House 31 de Janeiro. A Hospedaria Vigorosa, que foi reabilitada, chama-se Antas Ville Guesthouse Porto. A antiga Hospedaria Ferreira Cardoso responde por Jualis Guest House. E a antiga residencial César por Boavista Guesthouse.
De acordo com o Registo Nacional de Alojamento Local, entre Janeiro e Julho deste ano registaram-se 1623 novos alojamentos locais, mais 147% do que em igual período do ano anterior. No final de Julho, o Porto somava 3928. Lisboa ia em 9170 registos. A 3 de Outubro, o Porto já subira para 4425 e Lisboa para 9905.
“Fosse uma família que alugava um quarto, fosse um proprietário que alugava uma casa por divisões, fosse uma pensão, havia alguma facilidade em encontrar quartos para alugar”, diz Etelvina Ferreira, directora da Direcção de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. “Neste momento, na cidade de Lisboa é quase impossível. Está tudo a transformar-se em alojamento local e os nossos utentes não têm capacidades económicas para lá chegar. Há pessoas que pedem apoios para quartos de 300, 400, 500 euros.”
“Não se criaram soluções para pessoas em situação de sem abrigo, cujos recursos são baixíssimos”, lamenta Alfredo Costa, da cooperativa Welcome Home. Recebem 183 euros de Rendimento Social de Inserção (RSI) ou 203 de pensão social de invalidez. Que acção social – da Segurança Social ou da Santa Casa, que em Lisboa substitui a Segurança Social – cobrirá a diferença?
O caso de Jorge Augusto é paradigmático. Recebe 183 euros de RSI e paga 170 euros pelo quarto. A acção social entrega-lhe 80 euros para medicamentos. Almoça e janta na Casa da Rua. “Levo sete anos limpo, a tentar endireitar a minha vida”, diz. “A estabilidade não é muita, mas é razoável. Não dá para passar fome. De repente, perco a maior estabilidade que tenho que é um tecto!”
Procura casa com um casal. “Estamos a tentar arranjar nos aforas da cidade.” Conhece quem esteja aflito. “Para onde é que as pessoas vão? Eu sei que há instituições que cederam casas para partilhar, mas isso não chega para todos.” O alojamento de longa duração está a dar os primeiros passos.
Lisboa está a investir no programa “housing first”, uma estratégia que passa por alojar logo as pessoas em casas individuais ou partilhadas e por trabalhar depois com elas. Neste momento, beneficia 58 pessoas em situação de sem abrigo. Os concursos para mais 50 vagas já foram aprovados.
“O “housing first” começa a ter dificuldade em encontrar casas disponíveis”, admite João Afonso, vereador dos direitos sociais. “Usamos o valor de renda do mercado de há três ou quatro anos, o que torna tudo muito mais difícil e pode levar a que o programa se torne mais dispendioso.”
O Porto dispôs-se a criar uma bolsa de casas de transição com património de instituições locais. No ano passado, a associação mutualista Benéfica e Previdente disponibilizou dois apartamentos, que acolhem cinco pessoas. Já este ano, a Santa Casa da Misericórdia do Porto cedeu dois apartamentos que acolhem sete pessoas. Seis pequenas casas, com lotação para 12 pessoas, deverão ser recuperadas para o mesmo fim.
Miguel Martins partilha um desses apartamentos com dois homens. Vivia numa pensão da Rua Formosa. O prédio precisava de obras. O proprietário avisou que as ia fazer. Convencida de que não conseguiria suportar o aumento da renda, a senhoria reformou-se. “Ele vai montar um hostel.”
“Era 'uma mulher porreira', a senhoria. O quarto era pequenino mas para mim dava.” Esteve dois anos e meio naquela pensão. “Quando fui para lá, ia da rua. As condições pareciam-me óptimas. Foi mais ou menos como agora, que vim da pensão para aqui.” Tudo lhe parece óptimo. Tem um quarto espaçoso, com luz natural, uma cama, um armário, cartazes nas paredes.
Para lá da casa de banho, partilham a sala e a cozinha. Nem sempre a convivência é pacífica. “Cada um tem o seu feitio”, diz Miguel, encolhendo-se, como se não fosse preciso dizer mais nada. Primeiro, um dos colegas queixava-se dos seus cabelos espalhados. Miguel pediu a Virgínia Silva que lhos cortasse. Agora, o mesmo colega queixa-se das peles que ele perde. Tem uma psoríase severa.
As contas continuam apertadas. Pagava 200 euros pelo quarto, com luz, água, televisão. Agora, cada um paga 60 euros, soma de renda, água, luz e seguro. Juntam-se para comprar a garrafa de gás e para pagar as comunicações (televisão, internet e telefone fixo). Pouco lhe sobra dos 183 euros de RSI.
Sente-se a fazer um caminho, apesar de tudo. Está Inscrito na Plataforma + Emprego, que faz parte do Núcleo de Planeamento e Intervenção nos Sem-Abrigo do Porto. “Tirei um curso de ajudante de cozinha.” É ver o que vem a seguir. “Não posso fazer planos a longo prazo. Com a porcaria que fiz, o corpo não vai aguentar muito. É um dia de cada vez”, suspira. “Trinta e tal anos de droga é uma vida um bocado parva.”