O livro das mil e uma traduções
Na primeira tradução portuguesa feita a partir do original árabe, Xerazade continua viva, mas despediu Aladino e o marinheiro Sindbad. Eis As Mil e Uma Noites, segundo Hugo Maia.
Num ensaio famoso sobre os primeiros tradutores europeus de As Mil e Uma Noites — essa “dinastia inimiga” composta por Galland, Mardrus, Burton, Lane, Littmann —, Jorge Luis Borges diz que cada um deles traduziu “contra” algum dos seus antecessores. Seria tentador dizermos que o tradutor português Hugo Maia — autor de uma tradução cujo primeiro volume acaba de ser publicado pela E-Primatur — não traduziu contra ninguém, aduzindo, por exemplo, a razão simples de a sua ser a primeira tradução portuguesa feita a partir da língua árabe. Mas, como tudo quanto diz respeito ao mais célebre e desconhecido clássico árabe da literatura “universal”, não é exactamente assim. Há cerca de dez anos, foi publicada no Brasil a primeira tradução em língua portuguesa feita a partir do árabe, por Mamede Mustafa Jarouche. Porém, o tradutor português preferiu evitar este “inimigo” dinástico (segundo Borges). E por boas razões: “Só tive acesso a uma dúzia de páginas e essa dúzia de páginas deu para ver que é de facto uma boa tradução. Nunca há dois tradutores de acordo, e há coisas que ele traduz com as quais eu não estou de acordo, e tenho a certeza de que se ele lesse a minha tradução também iria descobrir coisas que consideraria erradas. Mas eu preferi não consultá-la, nem quero consultá-la enquanto não acabar a minha tradução. A dúzia de páginas que consultei foi suficiente para me aperceber de que correria o risco de ser influenciado por essa tradução e não queria que isso acontecesse”, diz-nos Hugo Maia. A “angústia da influência” nem é exclusiva dos poetas nem foi inventada por Bloom. Mas, como nem sempre a ausência de uma tradição tradutológica significa maior liberdade, o tradutor não deixou de compulsar edições francesas e inglesas. Com resultados ambíguos: “Estou a lembrar-me de uma tradução francesa, de René Khawam, tradutor por quem sempre tive um grande apreço por causa de uma série de trabalhos que ele fez. Quando comecei a ler a tradução dele, fiquei com os cabelos em pé e não quis acreditar nas transformações que ele tinha feito ao texto e, sobretudo, num trabalho de investigação quase inexistente. Em muitos dos poemas, ele nem sequer se apercebe de muitas metáforas, nem se apercebe do significado de várias palavras e expressões.”
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Num ensaio famoso sobre os primeiros tradutores europeus de As Mil e Uma Noites — essa “dinastia inimiga” composta por Galland, Mardrus, Burton, Lane, Littmann —, Jorge Luis Borges diz que cada um deles traduziu “contra” algum dos seus antecessores. Seria tentador dizermos que o tradutor português Hugo Maia — autor de uma tradução cujo primeiro volume acaba de ser publicado pela E-Primatur — não traduziu contra ninguém, aduzindo, por exemplo, a razão simples de a sua ser a primeira tradução portuguesa feita a partir da língua árabe. Mas, como tudo quanto diz respeito ao mais célebre e desconhecido clássico árabe da literatura “universal”, não é exactamente assim. Há cerca de dez anos, foi publicada no Brasil a primeira tradução em língua portuguesa feita a partir do árabe, por Mamede Mustafa Jarouche. Porém, o tradutor português preferiu evitar este “inimigo” dinástico (segundo Borges). E por boas razões: “Só tive acesso a uma dúzia de páginas e essa dúzia de páginas deu para ver que é de facto uma boa tradução. Nunca há dois tradutores de acordo, e há coisas que ele traduz com as quais eu não estou de acordo, e tenho a certeza de que se ele lesse a minha tradução também iria descobrir coisas que consideraria erradas. Mas eu preferi não consultá-la, nem quero consultá-la enquanto não acabar a minha tradução. A dúzia de páginas que consultei foi suficiente para me aperceber de que correria o risco de ser influenciado por essa tradução e não queria que isso acontecesse”, diz-nos Hugo Maia. A “angústia da influência” nem é exclusiva dos poetas nem foi inventada por Bloom. Mas, como nem sempre a ausência de uma tradição tradutológica significa maior liberdade, o tradutor não deixou de compulsar edições francesas e inglesas. Com resultados ambíguos: “Estou a lembrar-me de uma tradução francesa, de René Khawam, tradutor por quem sempre tive um grande apreço por causa de uma série de trabalhos que ele fez. Quando comecei a ler a tradução dele, fiquei com os cabelos em pé e não quis acreditar nas transformações que ele tinha feito ao texto e, sobretudo, num trabalho de investigação quase inexistente. Em muitos dos poemas, ele nem sequer se apercebe de muitas metáforas, nem se apercebe do significado de várias palavras e expressões.”
O interesse do tradutor português (antropólogo por formação académica) pela língua árabe “aconteceu muito por acaso”, em 1999, quando frequentou em Lisboa um curso livre “que, como todos os cursos de árabe em Portugal, não era muito desenvolvido”. Aconteceu que “era bom aluno” e arranjou “uma bolsa para ir para a Tunísia durante o Verão”. Em 2001, “já com vários cursos de árabe frequentados em Lisboa e muito autodidactismo”, decidiu fazer um curso anual e intensivo no mesmo país: “E foi aí, em Tunes, que de facto comecei a saber qualquer coisa de árabe. Tornei-me autónomo, ao nível da leitura de jornais, e comecei a ler os meus primeiros livros de literatura árabe — e estou a referir-me ao árabe padrão — nessa época”. Seis anos passados a trabalhar em Marrocos enriqueceram a sua formação. Quando o editor da E-Primatur, Hugo Xavier, lhe propôs traduzir As Mil e Uma Noites, Hugo Maia hesitou, “e estava até muito inclinado para recusar”. Lembrava-se de ter lido há muitos anos — “numa altura em que eu nunca sequer imaginei que alguma vez fosse aprender a língua árabe” — uma versão portuguesa de Martim Velho Sotto Mayor traduzida da versão francesa de Galland: “Na altura fiquei com a ideia de um livro de contos engraçados, mas não fiquei sequer minimamente apaixonado por aquilo.” Foi só quando começou a “aprofundar a evolução histórica” do texto que se apercebeu de que “tudo aquilo que sabia das Mil e Uma Noites eram, na realidade, fabricações que se podem reportar aos séculos XVIII e XIX e que os textos mais antigos eram completamente ignorados”. Mais: “Até mesmo no mundo árabe, não circula nenhuma versão baseada nos textos mais antigos. As traduções que circulam em árabe são igualmente fabricações recentes, que incluem mesmo contos que foram traduzidos do francês”.
Até agora, em língua portuguesa, e exceptuando a já referida tradução brasileira de Mamede Jarouche, as muitas dezenas de versões correntes de As Mil e Uma Noites haviam sido traduzidas ou da versão francesa inaugural de Antoine Galland (publicada de 1704 a 1717) ou da versão francesa de Joseph Charles Mardrus (1898-1904). Entre elas, e como epítome do prestígio canónico de As Mil e Uma Noites, refira-se de passagem uma luxuosa edição feita pelos Estúdios Cor há cerca de 60 anos e que, além de contar entre os seus tradutores com Aquilino Ribeiro, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Branquinho da Fonseca, David Mourão-Ferreira, José Rodrigues Miguéis, José Saramago e outros, foi ilustrada por Fernando Azevedo, António Charrua, Carlos Botelho, Júlio Pomar, Sá Nogueira, etc. (avistámos um exemplar à venda por quase um milhar de euros). Para Hugo Maia, “mais original é o caso da tradução de Eduardo Dias, que saiu nos anos 50 do século passado": "Foi o único tradutor em Portugal que tinha alguns conhecimentos de árabe, supostamente, mas ele, de facto, não faz uma tradução do árabe. Na sua nota de introdução mostra que conhece as versões árabes impressas correntes, mostra conhecer a tradução inglesa do [Richard] Burton, critica, e com razão, a versão do Galland, por obliterar as partes mais eróticas [o “escandaloso decoro” do francês, dirá Borges], mas ele faz o mesmo, e pegou numas partes do Burton e noutras do Galland e montou a sua própria versão."
O arqueólogo e orientalista francês não se limitou a podar o original árabe que trouxera dos lados do Levante. Em busca das 1001 noites que só terão existido no título desta fantástica colecção de histórias, Galland acrescentou-lhe outras que lhe foram contadas, já em Paris, por um jovem aventuroso de Alepo chamado Hanna Diab, histórias que, paradoxalmente, se tornariam as mais emblemáticas do labirinto da bela Xerazade. Entre estas histórias “órfãs” (assim chamadas por só se lhe conhecerem contrapartidas árabes posteriores à tradução francesa de Galland), contam-se, por exemplo, Ali Babá e os Quarenta Ladrões e Aladino. Como diz Borges, a versão de Galland ( que foi a primeira numa língua europeia e que espoletou a difusão universal da obra) foi a pior de todas e a mais “embusteira”, mas também foi a que teve melhores e mais felizes leitores: de Coleridge e Thomas de Quincey a Stendhal e Poe. E Stevenson? Terá lido Lane ou o lendário Richard Burton?
A escolha de um original a partir do qual traduzir: eis, portanto, uma primeira “questão importante”. Conta Hugo Maia: “Percebi que não poderia traduzir partindo das versões correntes em língua árabe, que em geral se baseiam na chamada versão de Bulaq, que foi a terceira edição impressa das Mil e Uma Noites em língua árabe, no Egipto, em 1835. Essa versão de Bulaq, que já inclui as 1001 noites que as versões mais antigas nunca terão tido, e que ninguém sabe muito bem quem fez, surgiu para responder à ânsia dos orientalistas europeus em busca de um texto que de facto tivesse 1001 noites e que fosse o texto completo e original. Não é por acaso que quase todos os manuscritos das Mil e Uma Noites se encontram em bibliotecas europeias ou americanas.”
A história das sucessivas, contraditórias e equívocas edições de As Mil e Uma Noites (que, aliás, bem poderia ter sido inventada por Borges) parece ser a de um livro de versões e traduções em busca de um original para sempre perdido ou que nunca existiu. Mas, não havendo certeza nenhuma sobre esse mítico texto “completo e original”, sabe-se, pelo menos, qual é o manuscrito mais antigo existente: data do século XIV e encontra-se na Biblioteca Nacional de França, estando até acessível na Internet. Conta Hugo Maia: “Existe também uma versão editada que é aquela que eu mais uso, feita por Muhsin Mahdi.” Trata-se, aliás, esta última, da única edição crítica do texto árabe e foi publicada entre 1984 e 1994 em Leiden, na Holanda. “Os manuscritos que mais utilizo” — prossegue Hugo Maia “são o da Biblioteca Nacional de França e outro que está na John Rylands Library, em Manchester": "Não tive acesso directo ao manuscrito da Biblioteca do Vaticano, porque achei que não seria necessário, pois a edição de Mahdi inclui uma série de notas comparativas com esse manuscrito.” Comenta o tradutor: “O mais engraçado é que o manuscrito que o Galland utilizou para a sua tradução é o mesmo manuscrito que estou a utilizar para a minha. É o mais antigo que se conhece. Só que enquanto eu tenho uma aproximação literalista, ele fez uma versão de autor, que estou agora inclinado a pensar que é a maior parvoíce que se pode fazer. No entanto, quando comecei, tinha uma abordagem à questão da tradução literária que era muita mais próxima daquilo a que se chama versões. Apercebi-me de que isso seria um erro grande. Se eu tivesse feito uma versão deste livro, teria feito simplesmente aquilo que todos os orientalistas já fizeram. Fazer uma tradução sempre o mais literalmente possível é mais desafiante. Acaba por ser mais fácil fazer versões, porque dão para mais aldrabices por parte dos tradutores. É claro que uma tradução nunca sai cem por cento literal e se saísse seria ilegível, mas tornou-se para mim desde o inicio muito importante que o texto de chegada tivesse o mínimo possível de desvios em relação ao texto de partida.”
à linguagem de um contador de histórias
Esta afirmação de Hugo Maia poderá, eventualmente, intrigar algum leitor que, decidido a seguir o fio da voz de Xerazade (que conta histórias para salvar a pele, se bem se lembram), depare no texto expressões como “ao depois”, “por mor de” e muitas outras de pristina e talvez já pretérita coloquialidade. Mas o caso é assim explicado pelo tradutor: “Eu queria que a tradução em português fosse mais ou menos evocativa dos chamados contos orais, tal como foram registados sobretudo na época do Romantismo. Há compilações muito interessantes: a do Consiglieri Pedroso, por exemplo, tem uma linguagem muito fluida e que é parecida com aquela que se encontra nos manuscritos das Mil e Uma Noites. Eu queria também uma linguagem que parecesse ser a de um contador de histórias.”
O mais difícil, de facto, admite Hugo Maia, “foi encontrar o registo adequado em português”, em particular porque tal registo deveria ecoar a oralidade que o tradutor lê no original árabe: “Quando leio o texto árabe, oiço sempre a voz de um contador de histórias. Ou seja, não me bastava fazer uma tradução que fosse o mais literal possível ao texto original, porque há um tom que tinha de estar presente para além da palavra. Encontrar o espelho de cada palavra na língua de chegada é muito importante, mas também é preciso passar o tom, a voz, a musicalidade. E isso foi muito difícil. O que fiz, basicamente, foi ler tudo o que havia de contos orais publicados em Portugal, nomeadamente os de Consiglieri Pedroso, os de Teófilo Braga, os de Adolfo Coelho. Para dar uma certa antiguidade ao texto, peguei em obras como o Orto do Esposo, do século XIV, e Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; nenhuma delas tem que ver com as Mil e Uma Noites, mas houve expressões e formas de construir as frases que eu fui lá buscar de certa maneira. Eu quis dar esse tom porque também tenho a mesma sensação quando estou a ler o texto em árabe. O texto tem uma série de construções que realmente são antigas, que já não se utilizam no árabe de hoje em dia, nem oral nem escrito.” Fique, pois, registado e claro que aquela espécie de pátina que modula o texto desta tradução portuguesa foi procurada e perseguida: “Essa estranheza foi, precisamente, propositada, porque também sinto essa estranheza ao ler o texto em árabe. E qualquer leitor árabe contemporâneo, ao ler o texto em árabe, sente essa estranheza e descobre vocabulário que muitas vezes não conhece.”
O presente volume, que soma 400 páginas, termina no curso da 101.ª noite. Hugo Maia está ainda a trabalhar no segundo volume, que será “ligeiramente maior” do que o primeiro e que deverá ser publicado no próximo ano: “A minha tradução vai incluir as 282 noites do manuscrito mais antigo, que por vezes tem lacunas que têm de ser preenchidas por outros manuscritos da mesma época ou um bocado posteriores, e vai incluir também mais cerca de cem noites para poder concluir a última história. A última história não está concluída nos três manuscritos mais antigos, é interrompida no mesmo sítio. Fui buscar a um manuscrito mais tardio a conclusão dessa última história. Só havia duas opções: ou acabar a tradução umas noites antes e não traduzir a última história; ou então, traduzindo-a, havia a necessidade de que o leitor conhecesse o final da história, e eu fui buscá-lo a um manuscrito posterior da tradição egípcia.” O tradutor trabalhou durante dois anos no presente volume: “Mas é preciso ver que nesses dois anos não me limitei a traduzir e, à parte isso, houve todo o trabalho de pesquisa que foi necessário fazer. Foi acertado ir buscar as versões mais antigas, porque são as mais interessantes, mesmo que haja evidentes contradições no meio das histórias e haja frases mal feitas. Eu até gostava de fazer uma tradução ainda mais literal, deixando passar mesmo certos erros na construção das frases, mas isso seria arriscado e toda a gente diria que o tradutor era mau e que não sabia escrever português. Mas, de facto, o livro está escrito numa língua que está mal escrita, que não é propriamente uma língua literária. Eu podia ter harmonizado o texto, podia ter eliminado certas contradições para produzir um texto mais coerente, mas preferi não fazê-lo, porque achei que esse tipo de contradições deveria passar na tradução.”
Frugal, quanto a notas e outros comentários, para não distrair nem atrasar o leitor com minudências acessórias, esta corajosa tradução não dispensa um extenso, informado e elucidativo preâmbulo. Não contem, porém, os leitores com Aladino, Ali Babá, o marinheiro Sindbad e outras estrelas da antiga e equivocada companhia de Xerazade. Que continua viva.