Morreu Anne Wiazemsky, escritora, actriz, musa de Godard

Estreou-se no cinema com Robert Bresson, filmou com várias vezes com o marido, depois desertou em direcção à literatura. Tinha 70 anos.

Foto
Anne Wiazemsky na sua estreia no cinema, Peregrinação Exemplar DR

A actriz e escritora francesa Anne Wiazemsky, que teve em Marie, a figura sacrificial de Peregrinação Exemplar (Robert Bresson, 1966), a sua inesquecível primeira encarnação no cinema, morreu nesta quinta-feira em Paris, de cancro.

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A actriz e escritora francesa Anne Wiazemsky, que teve em Marie, a figura sacrificial de Peregrinação Exemplar (Robert Bresson, 1966), a sua inesquecível primeira encarnação no cinema, morreu nesta quinta-feira em Paris, de cancro.

Neta do escritor, e membro da Academia Francesa, François Mauriac (1855-1970), que seria seu tutor após a morte do pai, filha de um príncipe russo que se exilou na Europa após a Revolução de Outubro e depois se tornou diplomata, Anne Wiazemsky nasceu em 1947 em Berlim e teve uma infância nómada, com longos períodos passados em Genebra e Caracas antes do regresso da família a Paris, em 1962. Foi primeiro actriz e depois escritora (estreou-se em 1988 com o livro de contos Des filles bien élevées, publicou ainda este ano, na Gallimard, Un saint homme).

No cinema, começou quando tinha apenas 18 anos com uma figura totémica, Robert Bresson, que mudaria a sua vida, como sempre reconheceu: "O meu encontro com Robert Bresson determinou a minha vida; é tão simples como isso, e é essencial." A rodagem, contaria em 2007 em Jeune fille, foi um processo turbulento e doloroso em que nem sempre lhe foi fácil manter uma distância de segurança em relação ao realizador: "O Bresson sempre teve uma relação muito próxima com as suas actrizes durante as filmagens. Mas no meu caso ele levou a experiência ao extremo. Ao longo de um mês e meio, vivemos debaixo do mesmo tecto em quartos contíguos e ele nunca me perdeu de vista (...). A princípio, contentava-se com segurar-me o braço ou dar-me umas palmadinhas no rosto. Mas depois chegava o desagradável momento em que tentava beijar-me... Eu empurrava-o e ele não insistia, mas ficava com um ar tão infeliz que eu me sentia sempre culpada."

Mas foi também nessa rodagem que Anne Wiazemsky perdeu a virgindade com um membro da equipa do realizador (o que, contou anos mais tarde, lhe deu coragem "não só para dizer não a Bresson como para dizer não a outros homens também") e que encontrou aquele que viria a ser seu marido, aquele para quem viria a ser uma musa, Jean-Luc Godard (figura não menos totémica...). Com ele, filmaria imediatamente a seguir O Maoísta (1967) – casaram-se dez dias antes da estreia do filme –, Fim-de-semana (1967), Le Gai Savoir (1969) e Tudo Vai Bem (1972), este já numa altura em que, recorda o Libération no seu obituário, já tudo ia mal. Foi de resto a partir do seu livro Un an après (2015) que o realizador Michel Hazanavicius filmou Redoutable, mergulho numa relação problemática e biopic de um artista influente em plena crise existencial (que a crítica achou grotesco e caricatural, e que o próprio achou uma "ideia estúpida") com Louis Garrel no papel de Godard e Stacy Martin na pele de Wiazemsky. Divorciaram-se oficialmente em 1979.

Ainda nos anos 70, foi George Sand em George qui??, de Michèle Rosier; antes, em 1968, filmou A Semente do Homem com Marco Ferreri e Teorema com Pasolini, outra figura dominadora: "É quase banal falar do fascínio que um realizador pode ter pela sua actriz principal. A emoção que existiu entre mim e Bresson, voltei a senti-la com Pasolini quando filmámos Teorema. Pode suscitar boas performances. Mas o Pasolini era homossexual. Nem sempre significa que tenhamos de dormir juntos."

À medida que os anos passaram, foi-se retirando do cinema, embora tenha filmado ainda com Philippe Garrel (L'Enfant Secret, 1979) ou André Téchiné (O Encontro, 1984). Depois, "livro após livro, discretamente, forjou uma estatura de romancista amada e reconhecida", recorda o Libération, sublinhando o modo como "o rico território familiar alimentou a sua obra", juntamente com "uma sensibilidade exacerbada pelos encontros amorosos ou desastrosos". Ao todo, foram 12 romances (incluindo Canines, Prémio Goncourt des Lycéens em 1993) que atravessaram vários episódios da sua vida, mas também das dos seus antepassados Wiazemsky ou Mauriac.

Alguns desses episódios, os que ela escolheu fixar em Un an après e que dão conta de "uma relação engraçada em tempos engraçados", como a própria resumiu ao realizador Michel Hazanavicius, estão novamente vivos em muitas salas de cinema de França, onde Redoutable se estreou há menos de um mês e continua em exibição.