Dança vacilante à sombra de Tatsumi Hijikata
Quem não conhecer os escritos e a dança de Hijikata, o seu contexto intercultural, dificilmente encontra (algumas) das chaves de leitura desta Dança Doente.
Temos visto vários coreógrafos contemporâneos reactualizarem um interesse antigo pela cultura performativa nipónica. No cerne desta história estão os trânsitos entre o Japão e o Ocidente que, dos modernismos à contracultura do pós-guerra, fascinaram as vanguardas literárias, das artes visuais e performativas ao longo do convulsivo século XX.
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Temos visto vários coreógrafos contemporâneos reactualizarem um interesse antigo pela cultura performativa nipónica. No cerne desta história estão os trânsitos entre o Japão e o Ocidente que, dos modernismos à contracultura do pós-guerra, fascinaram as vanguardas literárias, das artes visuais e performativas ao longo do convulsivo século XX.
Em Dança Doente, o brasileiro Marcelo Evelin (Piauí, 1962) abalançou-se ao seu próprio périplo pelo universo de Tatsumi Hijikata (1928-1986), o lendário coreógrafo e performer japonês, criador do butô – “dança das trevas”, da obscuridade da natureza humana –, entre a polémica obra fundadora, Kinji, de 1959 (Amores Proibidos, inspirada no livro homónimo de Yukio Mishima), e Yameru Maihime, de 1984 (Bailarina Doente). Espaço literário-performativo a cruzar reminiscências da infância no Japão rural e o embate com uma Tóquio trepidante; a descoberta das subversões do surrealismo e o deslumbre pelo abjeccionismo de autores malditos como Mishima ou Genet. Uma dança niilista, inversa ao corpo performático, liturgia da decadência, deformidade e sexualidade transgressivas, em revolta com os preceitos da sociedade moderna.
Numa cena sombria, os intérpretes, corpos heterogéneos de camisetas e leggings negras, fitam, estáticos, o público disposto dentro do proscénio. Um olhar atento terá ainda notado a galinha embalsamada pousada numa das consolas de som a ladear o palco; e escutado, talvez, a brevíssima alocução roufenha de Hijikata, as palavras "je t´aime", pistas para o controverso Kinji de 1959, dueto masculino onde um performer asfixiava uma galinha entre as coxas, cerimonial preliminar a uma sugerida relação sexual iniciática e violenta com um homem mais velho. A sombra tutelar do mítico mestre japonês pairava sobre esta visita livre ao pathos da sua obra.
A quietude inicial é rasgada pelo contraste branco de passadeiras de linóleo, ciclos de explosão e de contenção, e sonidos electrónicos bem urdidos à solenidade de A Donzela e a Morte (Schubert), ora estrondosos, ora no limiar audível. Os intérpretes, agrupados ou dispersos sob um grande painel suspenso a deixar visível apenas quadris e membros inferiores, alternam acções individuais expansivas e movimentos mínimos, ondulações de alga, histrionismo das faces – alusões ao butô que requereriam outra espessura; as transições energéticas não se organizaram também de modo a induzir eco no espectador. Já a peça se instalava num limbo quando surge a versão da sedução e da consumação eróticas, crueza explícita e brutal; o aromazinho a Morte em Veneza afigurou-se desconectado do todo, e o efeito parecia ser o de recuperar a algo esmorecida atenção do público.
Depois do paroxismo, o palco vazio, a serenidade. A luz decai e uma silhueta masculina de longa saia branca, misto do tradicional hakama e rendados de mãe de santo, percorre lentamente a cena extraindo das cordas de um cavaquinho os sons de um shamisen. Uma suspensão do tempo, a de um narrador no epílogo da uma história, que quase resgatava a peça da sua dispersão, é comprometida pela extensão deste final anunciado.
Por relances, Evelin pareceu conjugar micro-citações do seu próprio território criativo com o imaginário de Hijikata, possíveis vias para a identidade da obra: na figura totémica coberta de ráfia, laivos do sincretismo afro-brasileiro e de bizarras personagens do kabuki; no casal que desfila (de vestido vermelho e kimono depurado) os cortejos do maracatu. Mas quem não conhecer os escritos e a dança de Hijikata, o seu contexto intercultural, dificilmente encontra (algumas) das chaves de leitura desta Dança Doente que vacilou em inventar um universo que valesse por si mesmo.