Espanha Invertebrada
A demissão do Governo de Rajoy poderia abrir o caminho para um novo consenso, desta feita em torno da ideia de um Estado Federal. Ainda irá a tempo?
Os catalães queriam decidir o seu futuro pelo método democrático, isto é, pelo voto, futuro esse que poderia ser a sua adesão ao projeto espanhol ou a independência. O Estado espanhol reagiu, como o fez no século XVII, enviando as forças de repressão, neste caso a Guardia Civil. Que o espírito de muitos era de guerra ficou bem provado pelas bandeiras e os gritos guerreiros de alguns guardas que partiam, mas sobretudo dos que se vinham despedir dos combatentes. Chegaram à Catalunha e depararam-se com uma população pacífica (parecia que Gandhi tinha por lá passado), que só procurava exercer o seu direito de voto e com uma polícia catalã que recusava recorrer à violência para impedir os seus concidadãos de votarem. A consequência foi que a maioria esmagadora votou e a Guardia Civil atacou onde pôde, agredindo cidadãos de todas as idades, cenas que chocaram o mundo. Não me recordo de nenhum outro caso, em regimes democráticos, de violência contra pessoas que queriam votar.
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Os catalães queriam decidir o seu futuro pelo método democrático, isto é, pelo voto, futuro esse que poderia ser a sua adesão ao projeto espanhol ou a independência. O Estado espanhol reagiu, como o fez no século XVII, enviando as forças de repressão, neste caso a Guardia Civil. Que o espírito de muitos era de guerra ficou bem provado pelas bandeiras e os gritos guerreiros de alguns guardas que partiam, mas sobretudo dos que se vinham despedir dos combatentes. Chegaram à Catalunha e depararam-se com uma população pacífica (parecia que Gandhi tinha por lá passado), que só procurava exercer o seu direito de voto e com uma polícia catalã que recusava recorrer à violência para impedir os seus concidadãos de votarem. A consequência foi que a maioria esmagadora votou e a Guardia Civil atacou onde pôde, agredindo cidadãos de todas as idades, cenas que chocaram o mundo. Não me recordo de nenhum outro caso, em regimes democráticos, de violência contra pessoas que queriam votar.
O Governo espanhol fracassou totalmente, a ideia da Espanha como "Nação de Nações" ficou comprometida e os independentistas reforçaram a sua legitimidade.
A unidade nacional e a democracia só podem sobreviver enquanto as duas significarem a mesma coisa, pois, por muito que custe aos culturalistas, a "Nação democrática" não é, essencialmente, uma língua ou uma narrativa histórica. Em democracia, é uma comunidade de cidadãos que permite a unidade de indivíduos com uma pluralidade de pertenças culturais.
A Catalunha é um bom exemplo do respeito pela diversidade cultural dos seus habitantes e a maioria esmagadora dos defensores do referendo não se identificam com o nacionalismo identitário excludente, que é o flagelo da Europa. Foi na Catalunha que teve lugar a maior manifestação europeia em defesa dos refugiados, como já tinha sido em Barcelona que se tinha realizado uma das maiores manifestações contra a guerra no Iraque.
Foi o entusiamo catalão com a restauração da democracia, no fim do franquismo, que permitiu manter a unidade de Espanha, foi a sua convicção que em democracia os seus direitos seriam respeitados por um estatuto avançado de autonomia. A unidade no pós-franquismo não foi imposta à Catalunha, foi livremente aceite. Se obrigados a escolher entre unidade nacional ou democracia, muitos, e não apenas em Espanha, escolheriam a liberdade.
O que Rajoy não compreende é que nas democracias do século XXI não é possível garantir, pela força, a unidade dos Estados, nem mesmo em nome de preceitos constitucionais. Só como forma de prevenir uma violência maior se legitima o uso da violência em democracia. O Estado espanhol usou a violência legal para combater o separatismo da ETA, não porque defendia a independência do País Basco, mas sim porque a organização recorria ao assassinato. Mesmo neste caso, a legalidade da violência dependia da proporcionalidade do seu uso e do respeito pelos Direitos Humanos. Quando membros do Governo de Felipe González apoiaram os Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL) que cometiam assassinatos, cometeram um crime e acabaram por ser julgados.
O movimento independentista catalão é pacífico, sempre recusou a violência, ao contrário da ETA ou do IRA - dois exemplos de movimentos que lutavam pela autodeterminação em países onde existe liberdade de manifestação, de opinião e de organização, incluindo em prol da secessão.
A violência indiscriminada contra cidadãos que não ameaçavam ninguém é não só uma violação dos Direitos Humanos, mas também um grave erro político. O facto de o Tribunal Constitucional ter considerado ilegal o referendo em nada justifica os mais de 300 feridos, alguns em estado grave. Aliás, o Tribunal Constitucional tem graves responsabilidades ao, em 2010 e a pedido do PP, ter considerado ilegal o estatuto, à data em vigor, de autonomia da Catalunha, negociado pelo PSOE e aprovado em 2006 pelo Parlamento Espanhol.
Nos inícios do século XX, em plena crise nacional, José Ortega y Gasset alerta em España invertebrada para o perigo que a afirmação do particularismo trazia para a unidade de Espanha escrevendo: “Para mi esto no ofrece duda: cuando una sociedad se consume víctima del particularismo, puede siempre afirmarse que el primero en mostrarse particularista fue precisamente el Poder central. Y esto es lo que ha pasado en España.”
Ora foi o que se voltou a passar, o poder central espanhol transformou-se no poder de uma minoria que só pensava nos seus interesses, que assumiu de uma forma brutal a política de austeridade, ao mesmo tempo que se iam descobrindo numerosos casos de corrupção. Tais práticas deslegitimaram o poder de Madrid, nomeadamente o PP e o PSOE, e romperam com o contrato social da transição, obrigando a repensar a Espanha. Continuar a negar que na Catalunha existe uma vontade real de alterar a relação com o poder central em Madrid e insistir que tudo está resolvido pela Constituição de 1978 é caminhar para a desintegração.
Os governos europeus têm de tornar claro a Rajoy, como fez o primeiro-ministro belga, que tem que negociar e a única forma de o fazerem é abandonarem o mantra da “sacrossanta unidade” e mostrarem que a continuação da repressão poderá levar a ponderar a ideia do reconhecimento da Catalunha, como fizeram em relação ao Kosovo, com a oposição de Espanha. A vontade dos catalães em assumirem o seu destino é também resposta a um problema europeu, o da convicção de que as decisões são tomadas por Madrid e por Bruxelas, longe dos cidadãos.
A resolução da crise catalã está ligada à superação da crise da democracia espanhola, por não se ter formado um governo de alternativa ao da política de austeridade, por incapacidade de entendimento entre o PSOE e o Podemos.
A demissão do Governo de Rajoy poderia abrir o caminho para um novo consenso, desta feita em torno da ideia de um Estado Federal. Ainda irá a tempo? Não sei, mas sei que vale a pena ser tentado.
Uma Espanha federal, impulsionadora de uma Europa federal é uma bela utopia.