O futuro incerto do Largo de S. Paulo, arquétipo do pombalino
Em Lisboa, Manuel Salgado empenhou-se na escolha de um modelo de “desenvolvimento” que permite a destruição sistemática de todas as características do pombalino.
No período de transição na Câmara Municipal de Lisboa (CML) de Santana/Carmona para o de Salgado/Costa, houve conversações entre Maria José Nogueira Pinto e Manuel Salgado sobre o futuro da intenção de candidatar a baixa a Património Mundial.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No período de transição na Câmara Municipal de Lisboa (CML) de Santana/Carmona para o de Salgado/Costa, houve conversações entre Maria José Nogueira Pinto e Manuel Salgado sobre o futuro da intenção de candidatar a baixa a Património Mundial.
Esta intenção era baseada no valor único da Baixa Pombalina como conjunto Urbano de Reconstrução/Iluminista no Ocidente, processo cuja importância internacional foi ilustrada de forma completa e abrangente, na obra de José Augusto França.
No entanto, a dimensão patrimonial mais importante do pombalino é invisível. Ela é representada pela estrutura anti-sísmica, desenvolvida em série e estandardização de elementos, por engenheiros militares, a chamada “gaiola”. Esta, junto às tipologias de fachadas, com subtis variações, e constituídas pelas guilhotinas, mansardas, portas e famosos telhados duplos de Carlos Mardel, constituem o arquétipo do projecto único, concebido com Eugénio dos Santos na Casa do Risco.
Ao longo do séc. XIX, na concretização deste grandioso plano, o arquétipo de Mardel/Santos foi sendo alterado através de aumento de andares. Mas ele mantém-se inalterado em dois locais: no Rossio, no bloco do lado da Praça da Figueira, e no Largo de S. Paulo, no seu bloco sul, com traseiras partilhadas com o Mercado da Ribeira.
Ora, se o referido bloco no Rossio aguarda, há anos, por um projecto de hotel e encontra-se em estado lastimoso, o referido bloco sul do Largo de S. Paulo tem projecto anunciado por uma promotora imobiliária para a sua transformação, também, num hotel.
Depois de um curto período inicial positivo de descoberta orgânica e espontânea do potencial dos bares “vintage” na Rua Nova do Carvalho, rapidamente, passou-se à comercialização massificada da zona, através da criação da Rua Cor de Rosa, escandalosa transformação da via pública em plataforma contínua de “botellón” ruidoso e orgiástico com autorização entusiástica e colaboradora de José Sá Fernandes.
Este destruidor e colonizador “fenómeno” alastrou rapidamente, invadindo o Largo de S. Paulo com a sua carga diária de intenso ruído nocturno e devastação, e respectiva degradação da envolvente em sobrecarga humana e produtora de toneladas de lixo.
Manuel Salgado, embora continue a afirmar a intenção de candidatura à UNESCO, empenhou-se na escolha deste modelo de “desenvolvimento”, ao permitir a destruição sistemática de todas as características do pombalino, respectivamente a “gaiola” e respectivos interiores, e permitindo a alteração das características exteriores, chegando ao ponto de estimular sistematicamente a substituição das famosas mansardas de Mardel e respectivas janelas por telhados de zinco. Assim, desenvolveu-se um “fachadismo” omnipotente e omnipresente e destruidor de toda a autenticidade e carácter único do pombalino.
A pergunta fundamental agora é: que tipo de intervenção Salgado vai permitir no referido bloco sul do Largo de S. Paulo, que continua intacto nas suas características exteriores e interiores do pombalino (incluindo os silhares de azulejos pombalinos da Fábrica do Rato) e que constitui um dos últimos monumentos-arquétipos do projecto da Casa do Risco da reconstrução pombalina?
Um hotel vai forçosamente trazer exigências de tranquilidade e civilidade na envolvente, e provavelmente isto ilustra uma consciência crescente por parte da CML, de que a zona atingiu um ponto de saturação insustentável e um ponto de ruptura de degradação e decadência.
Mas os novos “moradores” não irão ser, certamente, os “lisboetas”.