Al Berto: Sines não estava preparada para ele
Al Berto, o filme, mostra um lado menos conhecido do poeta de Sines: ainda jovem, pintor, solar. Mas é também a história do realizador Vicente Alves do Ó, do seu irmão João Maria, de Sines e de Portugal nos anos 70.
Num Portugal em polvorosa em Novembro de 1974, Alberto Raposo Pidwell Tavares, pintor, 27 anos, inicia o seu “Processo Revolucionário em Curso”. Regressa a Sines depois de quase uma década de exílio (intelectual e político) em Bruxelas, onde estudou Belas Artes. Mas Sines não é já a terra de pescadores e marinheiros que o viu crescer – tinham começado as obras do complexo industrial, da refinaria, as expropriações do Gabinete da Área de Sines. O fascismo acabara, o Alentejo crescia, modernizado pelas estradas e cidades rasgadas pelo Gabinete, a revolução avançava.
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Num Portugal em polvorosa em Novembro de 1974, Alberto Raposo Pidwell Tavares, pintor, 27 anos, inicia o seu “Processo Revolucionário em Curso”. Regressa a Sines depois de quase uma década de exílio (intelectual e político) em Bruxelas, onde estudou Belas Artes. Mas Sines não é já a terra de pescadores e marinheiros que o viu crescer – tinham começado as obras do complexo industrial, da refinaria, as expropriações do Gabinete da Área de Sines. O fascismo acabara, o Alentejo crescia, modernizado pelas estradas e cidades rasgadas pelo Gabinete, a revolução avançava.
aqui está a imobilidade aquática do meu país, o oceânico abismo com cheiro a cidades por sonhar. invade-me a vontade de permanecer aqui, para sempre, à janela, ou partir com as marés e jamais voltar...*
Sines é a cidade por sonhar que Alberto reencontra. Mas Sines não estava preparada para ele. Nem para a cisão do nome – Al Berto – que vai ocorrer nesta altura, o pintor tornado poeta, numa “deriva pela insónia de quem se mantém vivo num túnel da noite. os corpos de Alberto e Al Berto vergados à coincidência suicidária das cidades”. Explicou numa entrevista (1987) a necessidade “de abrir a brecha com uma coisa que era muito minha e abri o nome ao meio, uma cisão num determinado percurso. Foi a maneira de não esquecer esse abismo”. É nesse túnel da noite, esse abismo que se abre em Al Berto, do realizador Vicente Alves do Ó.
Era preciso encontrar um actor que tivesse aquele corpo: jovem, magro, alto, meio inglês. Queria um elenco jovem, fresco, que as pessoas não associassem à televisão. “Não queria um actor conhecido a fazer de Al Berto”, explica. Foi a voz de Ricardo Teixeira (Al Berto no filme) que apanhou o realizador – aquela voz inimitável, grave e cristalina de Al Berto que hoje, 20 anos depois da morte do poeta (Junho 1997), já quase não se ouve. “Tenho pena que o Al Berto esteja a desaparecer do imaginário colectivo”, diz. “E que as pessoas que fazem coisas sobre ele tenham uma visão tão redutora.” Para Vicente, Al Berto tem estado “engavetado na figura tutelar da noite, da promiscuidade, do sexo, do Frágil – esta é a definição do Al Berto para a maior parte das pessoas, inclusive que o lêem. Esta é uma visão que entrava radicalmente em choque com o Al Berto que conheci.”
entro na casa, ninguém me persegue, subo as escadas e passaram doze anos, talvez mais.
Quando Al Berto regressa de Bruxelas e se instala em Sines, Vicente Alves do Ó tem apenas três anos. Só mais tarde se vão encontrar – trabalharão juntos nos anos 90, no Centro Cultural Emmerico Nunes (fundado em 1986) de que o poeta foi director. Por enquanto nada parece uni-los – a não ser Sines e o irmão de Vicente, João Maria.
os textos que nunca publiquei guardei-os rasgados numa gaveta. estão bem protegidos do pó, dos cheiros, dos ruídos e dos pequenos abutres de inéditos. hei-de oferecê-los ao fogo.
Vicente, 45 anos, abre a gaveta e mostra-nos estes textos que o fogo não consumiu. O realizador só percebeu que tinha “um manancial inacreditável” para falar de Al Berto após a morte do seu irmão, João Maria, em 2010. O espólio do irmão é impressionante: fotografias, cartas, poemas, diários, desenhos, livros por editar, “uma vida inteira de literatura que o João Maria se recusou sempre a publicar, acho, por causa da história que conto no filme, com o Al Berto”.
Dentro de uma primeira versão do primeiro livro do poeta Al Berto, publicado apenas 1977, está um inédito: marinheiros das estradas vazias, textos de João Maria do Ó, desenhos de Al Berto. Subtítulo: cartas de amor. Al Berto e João Maria, amantes em 1975, ocupam (ilegalmente) o Palácio, antes da família Pidwell, agora expropriado pelo Gabinete; e a eles se juntam uma série de jovens de Sines, poetas, músicos, sedentos de liberdade. O fascismo acabara (repito) e agora já podiam ser livres.
Al Berto chega cheio de projectos, de esperança: “Vamos fazer coisas”, conta Vicente. “É um príncipe magnânimo, que aglomera aquelas pessoas à volta dele, os incentiva e os faz viver, os faz acreditar. Puxa por aquilo tudo.” Assim foi: abriu a livraria Tanto Mar, queria começar a sua pequena editora. O Palácio era uma espécie de comuna onde saraus de poesia alternavam com excêntricas festas. Ele era “uma pessoa das pessoas, que incentivava quem estava à volta dele. Olhava para ti, e em vez daquela atitude ‘quero ser o rei disto tudo’, via que tinhas um talento e estava continuamente a espicaçar-te.”
O poeta nunca desistiu de ser pintor, mas seguiu sempre uma regra (entrevista em 1994): “Quanto estou farto, largo, e passo a outra coisa. Porque não tenho que insistir numa coisa que me deixa de dar prazer. A vida é feita para o prazer e não para o sofrimento. (...) Irrita-me imenso a militância nestas coisas. Sou militante apenas do prazer.”
É essa militância – hedonista, voluptuosa, feita desse lodo salino que é a salsugem – que Al Berto vai aperfeiçoar a partir de então, vadio, meio-louco, libertino, profundamente livre. Essa era a imagem que o poeta cultivava, mais tarde dividido entre Sines e Lisboa, o trabalho e a boémia, o dia e a noite. O medo só vai chegar depois:
só posso ser um espião, um depredador de noites e solidões alheias. sou aquele que se transmuda em milhares de máscaras e não é ninguém. de dez em dez minutos sou bailarino de luas diurnas.
Dele disse Mário Cesariny: “Uma pessoa encantadora e um bicho da noite, da tal noite que já vai rareando.” Mas não era este o Al Berto que interessava a Vicente – o realizador queria acrescentar-lhe algo para lá desta imagem. “Não me interessava pôr o Al Berto a foder num vão de escadas, ou a beber copos com os amigos no Frágil, com o who’s who da intelectualidade portuguesa e da classe artística.” Esse era o poeta lunário que, nos anos 80 e 90, revolucionou Lisboa – noctívago amigo das artes plásticas, da fotografia, da poesia, do jornalismo, da crítica, vencedor de prémios (PEN-Club de Poesia em 1988, medalha da Ordem Militar de Santiago em 92, atribuído por Jorge Sampaio). “Se é para as pessoas irem ao cinema confirmar aquilo em que acreditam, não vale a pena fazer biopics: estes só servem quando o cinema faz outro trabalho, de anexar uma nova leitura, uma nova perspectiva, sobre uma personagem que de repente congelou diante da opinião pública. Não te vou dar aquilo que queres ver. Vou-te mostrar outra coisa, que é o que este homem, tão grande, com um universo tão vasto, também era.”
E o que é que Al Berto também era? “Solar. É isso que tento mostrar no filme. As pessoas conhecem o Al Berto lunar. Queria mostrar como e onde começa o lado lunar do Al Berto.”
– Volto já, vou ali dizer ao meu irmão que não durmo em casa. Tens algum taco para bebermos copos e pagarmos a pensão? –, as arabichas são todas iguais, todos irmãos, todos chulecos da caridade alheia. engatam nos banhos públicos e têm muitos primos e tios, dizem que não gostam de viver aqui, amarelecem com o excesso de cerveja que bebem. às vezes cheiram a batata frita nos sovacos mas são divertidos na cama. suam a mediterrâneo, estão salvos.
1974, 75, 76, 77: foram anos de grande agitação em Sines, com a revolução, o período de consolidação do PCP na câmara (o outro irmão de Vicente, Francisco do Ó Pacheco, vai ser o primeiro presidente da câmara em democracia) e, sobretudo, as contínuas tensões entre a população e o Gabinete. Sines era um enorme estaleiro das obras da refinaria, do porto, das autoestradas. Numa entrevista a propósito dos 40 anos do complexo, Francisco do Ó Pacheco dizia ao PÚBLICO que ali havia cerca de “6, 7 mil trabalhadores”, “quase todos homens”, “as chatices que isso dava na pacatez da vila, a tensão social com as mulheres, as tabernas cheias, o aumento da prostituição: em 1977, tive de impor um ‘recolher obrigatório’ ao mandar encerrar os estabelecimentos à meia-noite.”
A vila estava a mudar: com gente de fora e gente de dentro. A livraria e a editora de Al Berto, os saraus literários e as festas do Palácio Pidwell promovidas pelo poeta, não caíram bem. “O partido [PCP] portou-se muito mal com eles. Mas imagino que deveria ser uma coisa dilacerante: estamos a falar de miúdos que são de famílias da terra. O Al Berto era um miúdo da terra – os Pidwell estão em Sines desde o final do século XIX. Para aquelas pessoas aquilo devia ser um conflito interior terrível: como é que a gente lida com estes filhos malcriados, que estão a sair da linha, que precisam de um correctivo?”, conta Vicente.
detestam-nos, eles detestam-nos. estão a construir um metropolitano vala comum, dia e noite esburacam a cidade. fazem buracos dentro de buracos, abomináveis subterrâneos nocturnos, espalham o pânico.
Mas não foi só o choque entre a pacatez de uma vila piscatória e a invasão das obras e dos forasteiros, o conservadorismo do partido face a uma juventude demasiado rebelde. “O que mais perturbou as pessoas foi o assumir da homossexualidade”, diz Vicente. “Isso é que foi a gota de água: se não houvesse ali homossexualidade, a história não tinha sido igual. Se o Al Berto fosse hetero e estivesse envolvido com uma das filhas dos pescadores, não seria tão grave.”
É paradigmático pensar que “numa terra de comunistas, que tanto lutou contra o fascismo, quando aquele grupo começa a viver naquela casa, a andar pela rua, a fazer as festas, foi tão maltratado”. A história dos dois filhos de duas famílias – os Pidwell, burgueses, e os Do Ó Pacheco, do partido – que se apaixonam e abertamente se envolvem é que foi a “pedra de toque: é aí que se traça a linha e se diz ‘não aceitamos isto’”, diz Vicente. Dez anos depois, quando o Centro Cultural é criado, as pessoas ainda comentavam que ali “era só putas e paneleiros: o CCEN foi tratado como o Palácio Pidwell, por uma questão de discriminação sexual; porque havia raparigas que se davam com rapazes e porque havia muitos homens que eram maricas e artistas.” Foi a sexualidade que mais mexeu com as pessoas: “A liberdade de fazer as coisas.”
tinha um travo a lodo na garganta, a cidade ardia-lhe sob os pés, as veias inchavam-lhe. uma claridade de constelação refulgia em suas mãos. a morte muito próxima.
Al Berto deixa Sines em 1977, fechando a livraria Tanto Mar, partindo para Lisboa para se tornar num poeta publicado. Há uma, várias, traições. “A colecção subúrbios entretanto desapareceu. Primeiro por falta de dinheiro. Segundo porque aquilo não era uma editora a sério. Era um jogo. Era uma coisa para irritar as pessoas”, contou Al Berto ao Diário de Lisboa (1989).
O livro que Al Berto e João Maria tinham planeado quando ainda estavam juntos não vai acontecer. Separam-se. “O primeiro livro do Al Berto ia ser um livro conjunto: tinha os seus poemas e depois o marinheiro das estradas vazias, poemas do João Maria”, diz Vicente. Al Berto arranca o pedaço do João Maria e publica sozinho, já em Lisboa, à procura do vento num jardim d’agosto (Contexto, 1977).
Para trás fica João Maria: meu Love aos caracóis de areia que tão gentil alga esconde o sexo.
Para trás fica o Palácio Pidwell, reclamado pelo Gabinete: o mobiliário à porta, ordem de despejo, ordem de despejo da noite do mundo. a cidade podia enfim adormecer descansada.
Para trás fica o jovem pintor: não voltei a pintar. o céu estava sulcado de rostos, túmulos, máscaras de água, inscrições premonitórias. chegara o momento de começar a escrever.
Claro, Al Berto voltará a Sines, instalar-se-á na Quinta de Santa Catarina, outras vidas de desvario virão, mas já não será o mesmo. Isso nota-se, aliás, na forma como mais tarde (1989) falará daqueles tempos revolucionários: “Eu achava engraçado publicar textos daqueles num momento em que Portugal andava entretido a ler Marx em vinte páginas. Um gajo leva uma vida para ler Marx e, se calhar, até nem gosta muito. De maneira que o que havia a fazer era dar-lhes nas trombas. Foi divertido chegar às livrarias, pespegar os livros e dizerem-te: não temos cá sítio para esta merda. A minha vingança é, agora, passar por uma livraria e ver o meu livro na montra. Sou exactamente o mesmo.”
Também se nota no facto, por exemplo, dos seus Diários (2012, Assírio & Alvim) não contemplarem anos anteriores a 1982. Na altura, a editora Golgona Anghel, também sua biógrafa, explicou ao Ípsilon que não se sabe por que razão há vários hiatos. Na Primavera de 1997, antes de ir para o Hospital dos Capuchos, Al Berto arruma os seus cadernos e as notas: “Não se sabe se, porventura, nessa altura não terá também deitado fora os supostos diários em falta. Não sabemos sequer se houve realmente diários. Os amigos contam que andava sempre com um caderninho no bolso. Quantos foram? É impossível determinar. E, no entanto, não deixa de ser fácil especular sobre esta ausência. Não havendo informações acerca disso, o mais acertado talvez seja não nos pronunciarmos. Reproduzimos, portanto, o que ficou, o que, talvez, o próprio autor tenha decidido que valia a pena guardar.”
Segundo Vicente, “a dor que Al Berto sentiu no fim daquela história: fechar a livraria, acabar com o meu irmão, sair daquela casa – ele fechou ali uma porta. E nunca mais falou. O João Maria também não. Parecia uma coisa traumática, como os gajos que vieram da guerra”.
A cidade também calou. Quando o Ípsilon lá foi em 2012, no encalço de Al Berto a propósito dos Diários, foi difícil arrancar histórias, partilhas, ouvir a sua voz ecoar ainda na vila velha de pedras roladas a descer para o mar. “Aquilo foi para eles muito duro, a forma como foram tratados por pessoas que os viram crescer. Eles fizeram uma coisa que só agora temos: o outing, miúdos que se assumem. Assumiram-se muito cedo numa sociedade muito pequena. E sentiam muita vergonha e muito embaraço pela forma como foram tratados. Há um ressentimento profundo e eles nunca o ultrapassaram. A vila também nunca os deixou ultrapassar, na verdade.” Por isso se diz também que Al Berto tem uma relação de amor-ódio com Sines: “Há um Al Berto pré-palácio e pós-palácio.”
Vicente fala do choque que foi a morte de Al Berto, em 1997. Linfoma aos 49 anos. Mas nessa altura, Sines sentiu-se ofendida: quando se começaram a fazer as homenagens em Lisboa “ninguém de Sines foi convidado”, diz Vicente. “E as pessoas de Lisboa sabiam perfeitamente a relação dele com Sines e com os amigos de lá. É por isso também que houve uma série de pessoas em Sines que se fechou.”
Sines desceu ao Castelo e viu a ante-estreia de Al Berto, no final de Setembro. Mais de mil pessoas. “Estava lá toda a gente. Foi muito bonito”, conta Vicente. Estava com medo da parte sexual do filme, “mas as pessoas encaixaram”. E houve uma espécie de redenção: “O filme faz bem à consciência colectiva da vila. Porque havia muita gente afastada do Al Berto.”
Al Berto, o filme, é a história de um processo, uma personagem, um fresco sobre uma época. “Ele desilude-se com a jovem democracia portuguesa, com a jovem liberdade portuguesa”. E entra na noite escura, “no lado lunar que as pessoas depois associam ao Al Berto”. Mas é aqui que se forma o poeta e aqui está uma “espécie de metáfora para tudo aquilo que foi e se tornou a democracia portuguesa: tudo em que Portugal se transformou e a desilusão destes 40 anos de democracia, sempre aos solavancos. Está lá a germinar”, diz Vicente. Naquela altura, Al Berto, João Maria, e os seus amigos caminhavam pelas ruas sob a chuva,
sem direcção, como hão-de caminhar os habitantes dos meus futuros livros. eu desejava conhecer as sórdidas caves onde jogam às cartas putas bichas e marinheiros. a morte espreitando sem se cansar no canto escuro de cada carta.
Os futuros livros foram, de facto, feitos desses habitantes, vagabundos, marinheiros, enfim, das estradas perdidas. “Quando Al Berto morreu, o João Maria ficou destruído”, conta Vicente. “A partir de então, foi uma lenta descida para os infernos. O título do livro do Al Berto, O Medo, aplicava-se à vida do meu irmão: não era o Al Berto o homem com medo, era o João Maria. O Al Berto tinha muitos medos, mas sempre foi um homem de acção.” Ali na vila de Sines, escreveu, prestes a partir:
sento-me no cimo de meu próprio lixo e sorrio. espero que cheguem outros dias com algum sonho, ou destino, mais feliz.
*Itálicos retirados de À procura do vento num jardim d’agosto (fragmentos de um exílio) 1974-75