Turquia, um país de acontecimentos esquisitos

Os tempos hão-de passar. Erdogan há-de desaparecer. A ditadura há-de desmoronar-se. Nós havemos de ganhar

Foto
Osman Orsal/Reuters

A Pelin, de 30 anos, tinha uma conferência científica no estrangeiro. Mas não conseguiu ir apresentar o seu trabalho porque vive num país de acontecimentos esquisitos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A Pelin, de 30 anos, tinha uma conferência científica no estrangeiro. Mas não conseguiu ir apresentar o seu trabalho porque vive num país de acontecimentos esquisitos.

Uma manhã, a polícia chegou a sua casa (e à casa de mais dez pessoas), levou todos os computadores, alguns livros e papéis do escritório. A Pelin ficou sem tese porque ainda não tinha guardado as últimas correcções na Internet e todos os backups nos discos externos também foram levados pela polícia. Porquê? Por causa das suas ligações a actividades terroristas, claro. E de onde veio essa suspeita? De alguém que tomou um café com alguém que a polícia acha que pode estar ligado a uma organização terrorista. E como é que a polícia sabe desta última pessoa, suposta “terrorista”? Não sabe. Acha. Tomar um café numa pastelaria e ser-se politicamente consciente é suficiente para se passar duas noites na esquadra. Pergunta-se aos “terroristas” sobre o que é que falaram naquele dia. Mostra-se uma foto de um dia qualquer há dois anos, numa pastelaria.

A polícia, disfarçada, teve bastante tempo para focar a câmara e tirar uma foto com boa resolução. Só não chegou a entender as palavras deste grande encontro clandestino em plena vista de dezenas de pessoas no meio do bairro. E assim se seguiram as detenções... apenas dois anos depois. A polícia achou perigosos os panfletos que foram encontrados nas casas. Podiam ser propaganda ilegal, não é? Não é. São panfletos assinados pelo HDP (Partido Democrático do Povo) e uma mera convocatória para um evento organizado há dois anos. Um evento autorizado. Mas o HDP às vezes parece ligado a outras organizações e pessoas, que por sua vez parecem ligadas a organizações terroristas. E pronto, já está.

O procurador achou perigoso que os nossos protagonistas saíssem do país. Tirou-lhes os passaportes. E assim a Pelin não pôde ir à conferência.

Entretanto, Ceylan, de 28 anos, decidiu entregar pedidos por escrito para poder receber os seus materiais de volta. Afinal, a polícia podia simplesmente copiar os conteúdos e a malta podia continuar a trabalhar, certo? Ela começou a ir ao procurador todas as semanas para entregar o mesmo pedido. Acabou por comprar um novo computador e telemóvel. Já não há vida moderna sem estes objectos.

Passaram várias semanas, sem acusação, sem tribunal, sem nada. Um dia, Ceylan foi ao Palácio de Justiça para entregar o pedido do costume daquela semana e encontrou um post-it na porta do escritório do procurador. O post-it dizia que o procurador tinha sido detido por ligações à comunidade de Gülen. Ninguém na procuradoria sabia nada. Ou, pelo menos, assim lhes foi dito — ninguém quer obviamente comentar uma situação destas (ou no dia seguinte fica-se detido também). Mas então o procurador que andava à caça de terroristas afinal era também terrorista? (O jornalista Ahmet Sik, em sua defesa, já tinha sugerido: “A organização terrorista que procuram está disfarçada de partido e está a mandar no país.”)

Os nossos protagonistas andaram algumas semanas a tentar descobrir o que acontecera aos seus processos. Enfim, basta dizer que não tiveram grande sucesso. Depois de uns meses, chegou um novo procurador. E, depois de mais uns meses, o novo procurador não achou grande piada a esta situação (e aparentemente tinha muitas pastas para ler e muitos processos pendentes para apanhar) e arquivou o processo de Pelin e Ceylan (e de mais nove pessoas).

Um dia, Murat, de 22 anos, recebeu uma carta em casa a notificá-lo de que o seu processo estava em “arquivamento”. Grande festa nessa noite! Tinham conseguido atingir o nada, que é melhor que o mau, certo?

Foram todos então ao Palácio de Justiça para compreender o processo dos seus processos. O secretário do procurador informou que o processo estava no Tribunal N.º 18. Foram lá. O secretário do juiz informou que o processo estava agora no Tribunal N.º 19. Brincadeira? Não. Compreenderam depois: o Tribunal N.º 18 tinha objectado ao arquivamento. (Não se sabe a que é que objectou ao certo.) Mas o procurador reenviou exactamente o mesmo despacho ao tribunal. Por isso, o processo subiu a um tribunal superior, que se chama... Tribunal N.º 19. (Não parece que esta sucessão poderia continuar ad infinitum? Esperemos que não, mas nestas coisas nunca se sabe porque a malta vive num país de acontecimentos esquisitos.) Foram então ao Tribunal N.º 19, que já estava fechado. Nesse dia, não houve nenhum protesto nas ruas das cidades da Turquia. (Não resisto a imaginar todos os activistas a “marchar” de um piso a outro dentro dos Palácios de Justiça das suas respectivas cidades.) 

Em Outubro de 2016, uns dias antes de ser preso, o líder Selahattin Demirtas deu uma entrevista em que disse: “Não estou em desespero nenhum. Nos períodos em que a opressão é exagerada e desproporcional, há uma vantagem: para ganhar, basta ficar de pé. Não é preciso responder aos ataques com força proporcional. Quem ataca com tanta força tem uma desvantagem: se, apesar deste enorme poder, não conseguir fazer cair o seu adversário, então perde tudo. Por isso, a oposição da Turquia deve avaliar esta oportunidade”.

Os tempos hão-de passar. Tayyip Erdogan há-de desaparecer (ou por morte, ou por morte). A ditadura há-de desmoronar-se. Nós havemos de ganhar. E os tempos vão continuar a passar. Imagino que, 45 anos depois, haja sempre alguém a dizer “antes é que era bom” ou “na altura havia ordem” ou “Erdogan não era assim tão mau” ou “mas a economia estava muito mais estável!” Mas os que viveram na ditadura islamista do Erdogan, as que tiveram a experiência da vida quotidiana neste período, os e as que ganharam o voto popular mas perderam as eleições, os que estiveram na prisão porque revelaram as operações de armamento de fundamentalistas sírios pelo governo turco — eles e elas vão-se lembrar e vão lembrar.

Já agora, quem é que pode lembrar aos europeus a sua História, por favor?