A Catalunha e o fantasma da independência de 6 de Outubro de 1934
Na Catalunha, o 6 de Outubro de 1934 deixou uma memória ambivalente: a da proclamação da ambicionada independência, mas também a da sua rápida perda, da violência e da suspensão do estatuto de autonomia.
1. Por vezes os acontecimentos que vivemos têm tais semelhanças com o passado que nos fazem interrogar se a história não se estará mesmo a repetir. Quando observamos o que está a acontecer na Catalunha, após o referendo de 1 de Outubro — turbulência política, greve geral, divisões nas polícias e forças de segurança nacionais e da Catalunha —, é inevitável pensar no ano de 1934. A 6 de Outubro desse ano, Lluís Companys, o Presidente da Generalitat, proclamou, em nome do povo e do parlamento, um Estado catalão no âmbito de uma federação republicana espanhola, num ensaio para a plena independência. Lluís Companys pretendeu assumir com o seu governo o exercício do poder soberano na Catalunha pela Generalitat. Mas o episódio independentista de 1934 acabou de forma trágica. Após a declaração política, Lluís Companys tentou um controlo efectivo militar no terreno, apoiando-se nos Mossos d’Esquadra e em alguns milhares de milícias armadas. O governo espanhol declarou o estado de guerra e enviou o exército. Os membros da Generalitat foram presos e o estatuto de autonomia da Catalunha suspenso. Lluís Companys fugiu para o exílio em França após a vitória de Francisco Franco na guerra civil de 1936-1939. Com a invasão e ocupação do território francês pela Alemanha nazi foi detido e entregue a Espanha, sendo fuzilado em 1940. Na Catalunha, 6 de Outubro deixa assim uma memória ambivalente: a da proclamação da ambicionada independência, mas também a da sua rápida perda, da violência e da suspensão do estatuto de autonomia.
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1. Por vezes os acontecimentos que vivemos têm tais semelhanças com o passado que nos fazem interrogar se a história não se estará mesmo a repetir. Quando observamos o que está a acontecer na Catalunha, após o referendo de 1 de Outubro — turbulência política, greve geral, divisões nas polícias e forças de segurança nacionais e da Catalunha —, é inevitável pensar no ano de 1934. A 6 de Outubro desse ano, Lluís Companys, o Presidente da Generalitat, proclamou, em nome do povo e do parlamento, um Estado catalão no âmbito de uma federação republicana espanhola, num ensaio para a plena independência. Lluís Companys pretendeu assumir com o seu governo o exercício do poder soberano na Catalunha pela Generalitat. Mas o episódio independentista de 1934 acabou de forma trágica. Após a declaração política, Lluís Companys tentou um controlo efectivo militar no terreno, apoiando-se nos Mossos d’Esquadra e em alguns milhares de milícias armadas. O governo espanhol declarou o estado de guerra e enviou o exército. Os membros da Generalitat foram presos e o estatuto de autonomia da Catalunha suspenso. Lluís Companys fugiu para o exílio em França após a vitória de Francisco Franco na guerra civil de 1936-1939. Com a invasão e ocupação do território francês pela Alemanha nazi foi detido e entregue a Espanha, sendo fuzilado em 1940. Na Catalunha, 6 de Outubro deixa assim uma memória ambivalente: a da proclamação da ambicionada independência, mas também a da sua rápida perda, da violência e da suspensão do estatuto de autonomia.
2. Democracia contra autoritarismo. Liberdade de um povo contra a opressão de outro. Os slogans são fáceis, poderosos, mas simplistas. Sob as emoções do momento, estes slogans inibem o pensamento crítico. Impedem uma reflexão ponderada sobre todas as possíveis consequências. Não nos iludamos quanto a vitórias: os maiores vencedores do 1 de Outubro (provavelmente os únicos se o conflito se adensar e perpetuar), foram os radicalismos nacionalistas de ambos os lados. Encontram nos acontecimentos novos argumentos para aumentar a confrontação e radicalização. Pode ser uma engrenagem trágica para a Catalunha, a Espanha e a União Europeia. Os fantasmas do ano de 1934 — um ano particularmente crítico em Espanha —, voltam hoje a pairar. O mês de Outubro desse ano foi extremamente violento e funesto nas suas consequências. Os acontecimentos de 1934 foram dos que mais contribuíram para a engrenagem que levou à guerra civil. Para além da Catalunha, nas Astúrias, uma greve geral revolucionária e uma rebelião armada contra o governo acabou por ser esmagada pela intervenção do exército, com alguns milhares de mortos e feridos. Em Espanha, as feridas do passado, da terrível guerra civil de 1936-1939, e da opressiva ditadura militar franquista, foram-se fechando, gradualmente, com bastante dificuldade, nos anos 1970 e 1980 pela transição para a democracia e a adesão à União Europeia.
3. Quis o infortúnio que neste ano de 2017 estejam na presidência do governo espanhol e da Generalitat dois políticos débeis e sem envergadura para as responsabilidades que têm em mãos. Mariano Rajoy, líder do PP, chefia um governo minoritário de centro-direita, apenas com o apoio, entre os partidos nacionais, do Cidadãos de Albert Rivera. Só após duas eleições legislativas inconclusivas, em finais de 2015 e 2016, pode formar governo. Na altura, o PSOE de Pedro Sánchez optou por não inviabilizar essa solução parlamentar, para evitar uma crise mais prolongada. Na Catalunha, Carles Puigdemont, do Partido Democrático Europeu Catalão / Convergência Democrática da Catalunha, um partido de centro-direita, preside à Generalitat. A coligação que o apoia — Juntos pelo Sim — é uma coligação frágil e ideologicamente contraditória. Engloba a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), de Oriol Junqueras, que se vê como herdeira do independentismo de 1934 e de Lluís Companys. Mesmo assim é uma coligação minoritária. Só tem uma (escassa) maioria parlamentar com o apoio da Candidatura de Unidade Popular (CUP) — um partido da extrema-esquerda, anti-União Europeia e anti-capitalismo. Carles Puigdemont chegou ao poder em inícios de 2016 como uma segunda escolha, após a CUP se ter recusado a apoiar um governo chefiado por Artur Mas. No referendo do passado 1 de Outubro, Mariano Rajoy e Carles Puigdemont procuraram disfarçar a sua fraqueza política com uma demonstração de força — policial num caso, popular no outro. Ambos são responsáveis pela grave crise constitucional e política instalada em Espanha, a qual pode facilmente transbordar.
4. Carles Puigdemont, Oriol Junqueras e Ada Colau têm apelado à intervenção da União Europeia, sobretudo desde os acontecimentos de 1 de Outubro. Invocam os princípios e valores europeus e os direitos humanos. Pois bem, convém que também não esqueçam que os nacionalismos não cabem na União Europeia. Esta fez-se contra o passado violento da Europa e os nacionalismos. Quando as emoções nacionais se sobrepõem à racionalidade, não há nacionalismos inteiramente pacíficos, nem na Catalunha nem em parte nenhuma do mundo. É uma utopia romântica apresentar como "maus" os nacionalismos dos Estados-nação tradicionais e "bons" os nacionalismos das nações sem o seu próprio Estado. Neste jogo político entre a Catalunha e a Espanha não há inocentes. Independentemente da justiça e legitimidade da causa catalã — cada um avaliará por si —, o que se trata, em termos estratégicos, é de procurar uma internacionalização de um conflito. É uma estratégia clássica de contrabalançar um poder mais forte, hoje usada com a União Europeia. Todavia, se o partido de Carles Puigdemont — o Partido Democrático Europeu Catalão, sucessor da Convergência Democrática da Catalunha —, se pode considerar europeísta, já o mesmo não pode dizer da CUP, que tem um papel chave no actual contexto. A coligação Juntos pelo Sim, que envolve ainda a Esquerda Republicana, é, como vimos, minoritária no parlamento da Catalunha. Depende assim da CUP, que é herdeira de um conjunto de tendências da esquerda radical, incluindo a anarco-sindicalista — a União Europeia não faz parte do seu projecto. Foram admiravelmente retratadas por George Orwell na sua “Homenagem Catalunha” (trad. port., Antígona, 2007), um livro de memórias da sua participação na guerra civil espanhola, que vale a pena ler ou reler.
5. Uma intervenção da União Europeia no conflito entre a Catalunha e o Estado espanhol, sendo louvável em termos morais e de valores europeístas, tem riscos políticos sérios. Muitos subestimam-nos pela onda emocional gerada pela intervenção policial para impedir o referendo de 1 de Outubro. Importa ter em mente que a União Europeia é também um "Estado de Direito", regulado pelos Tratados a nível "constitucional". O Tratado da União Europeia, no art.º 4.°, n.º 2, afirma, de forma muito clara, que a “União respeita as funções essenciais do Estado, nomeadamente as que se destinam a garantir a integridade territorial". Assim, qualquer intervenção da União que não seja pedida ou consentida por Espanha, será politicamente uma ingerência nos assuntos internos do Estado espanhol. Pior: juridicamente pode ser vista como uma violação do Tratado da União Europeia. Levaria a divisões profundas na União e amplificaria a crise para patamares mais graves. Assistimos, anteriormente, a duas vagas de movimentos nacionalistas e/ou populistas anti-União Europeia. Foram provocadas pela crise da Zona Euro e pela crise dos refugiados. Uma terceira vaga de nacionalismo e/ou populismo terá consequências destrutivas para a União Europeia. Poderá ocorrer caso se instale a ideia de que esta apoia, ou é complacente, com movimentos separatistas contra os Estados nacionais. O nacionalismo espanhol e outros, ressurgirão e vão alimentar-se do nacionalismo independentista da Catalunha. Não deixemos que os fantasmas dos anos 1930 destruam a Europa de paz e prosperidade em que vivemos.