Sarajevo 1992 - Barcelona 2017
Naqueles dias de ânimos exaltados na primavera de 1992 em Sarajevo, tudo – o conflito militar, o cerco à cidade – começou com tiros sobre uma manifestação pacífica e tiros sobre uma festa de um casamento. Será assim tão impossível de voltar a acontecer, na Catalunha? Não creio.
Alguns catalães votam este domingo num referendo sobre a independência. Escrevi alguns, porque muitos não o quererão fazer (como ficou demonstrado este sábado) e outros não o poderão fazer. Quer em relação aos primeiros, quer em relação aos últimos, a responsabilidade pela falha no exercício de um direito cívico deve ser assacada, em doses de igual e profunda irresponsabilidade, aos governos autonómico catalão e centralista espanhol. O primeiro pela forma precipitada, pouco clara e de maioria estreita como a chamada Lei de Transitoriedade foi aprovada no parlamento regional, entrando em rutura com a Constituição de Espanha de 1978; o segundo por fazer desta algo inamovível e sem espaço de discussão que não a ditada pelos seus próprios preceitos e, principalmente, pelo dispositivo securitário-legal-informativo montado para impedir o voto dos catalães, uma estratégia reveladora de desespero autoritário e que parece demonstrar à saciedade como décadas de democracia não fazem desaparecer estruturas e modos de atuação próprios de um tempo que a Transição julgou ter terminado. Questiona-se se o que temos assistido em Espanha nas últimas semanas a partir da Moncloa e das estruturas estatais seria possível acontecer se o país vizinho tivesse tido uma Revolução (ainda que de mui brandos costumes e com posteriores louvores presidenciais e pensões por bons serviços a facínoras da polícia política) em vez de uma Transição.
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Alguns catalães votam este domingo num referendo sobre a independência. Escrevi alguns, porque muitos não o quererão fazer (como ficou demonstrado este sábado) e outros não o poderão fazer. Quer em relação aos primeiros, quer em relação aos últimos, a responsabilidade pela falha no exercício de um direito cívico deve ser assacada, em doses de igual e profunda irresponsabilidade, aos governos autonómico catalão e centralista espanhol. O primeiro pela forma precipitada, pouco clara e de maioria estreita como a chamada Lei de Transitoriedade foi aprovada no parlamento regional, entrando em rutura com a Constituição de Espanha de 1978; o segundo por fazer desta algo inamovível e sem espaço de discussão que não a ditada pelos seus próprios preceitos e, principalmente, pelo dispositivo securitário-legal-informativo montado para impedir o voto dos catalães, uma estratégia reveladora de desespero autoritário e que parece demonstrar à saciedade como décadas de democracia não fazem desaparecer estruturas e modos de atuação próprios de um tempo que a Transição julgou ter terminado. Questiona-se se o que temos assistido em Espanha nas últimas semanas a partir da Moncloa e das estruturas estatais seria possível acontecer se o país vizinho tivesse tido uma Revolução (ainda que de mui brandos costumes e com posteriores louvores presidenciais e pensões por bons serviços a facínoras da polícia política) em vez de uma Transição.
Leia-se o célebre Manuel Castells, no seu Observatório Global, no La Vanguardia, de 16 de Setembro: “Ao Estado é fácil utilizar o seu potencial de repressão, mais difícil é controlar as consequências de uma injustificada intolerância”. Claro que também é pertinente o raciocínio de outro intelectual, espanhol, Fernando Savater, este sábado, dia 30, no El País: “Se um referendo em que uns se elegem a si mesmos para repartir o que é de todos (sem convidar os outros, os não catalães) pode passar por democrático é por falta de educação. E os mal educados não são especialmente esse terço de jovens que não acabam os estudos nem se forma profissionalmente (a juventude “robusta e enganada” de Quevedo), mas sim os que têm carreira e até doutoramentos, mas é como se não tivessem nada”.
Penso nos Balcãs, algo que faço amiúde. Dir-me-ão que na primavera de 1992 já tinha acontecido a independência da Eslovénia e a sua curta guerra, já havia atrocidades na Croácia, cuja independência tinha sido apressada por alemães e Vaticano, que o estatuto de autonomia do Kosovo e da Vojvodina já tinham sido revogados, que o mau funcionamento do sistema político jugoslavo era estrutural (será que o espanhol funciona bem?) e que, obviamente (alguns dirão isto aos gritos), Mariano Rajoy não é Slobodan Milosevic. Tudo verdade. Mas…
Milosevic não o era, como o mundo o viu e conheceu, antes de o ser. No início dos anos noventa, era apenas um político ambicioso que dirigia o partido na mais importante república de um Estado federativo cuja integridade territorial tentava preservar.
Em 1992, houve um referendo sobre a independência na Bósnia-Herzegovina cuja realização foi desaconselhada por muita gente, incluindo uma plataforma internacional de juristas, a chamada Comissão Badinter, até porque uma parte significativa da população – os sérvios bósnios – o rejeitava. Países europeus e EUA apoiaram e promoveram o referendo (não consta que algum o tenha feito para o referendo catalão). Depois, precipitaram-se no reconhecimento da independência (que desencadeou uma guerra civil, atrocidades sem nome, massacres como não havia memória em solo europeu desde o nazismo), com consequências até hoje, na forma como a Bósnia existe enquanto Estado.
Naqueles dias de ânimos exaltados na primavera de 1992 em Sarajevo, tudo – o conflito militar, o cerco à cidade – começou com tiros sobre uma manifestação pacífica e tiros sobre uma festa de um casamento. Será assim tão impossível de voltar a acontecer, na Catalunha, num contexto em que o poder estatal coloca polícias contra polícias e cidadãos? Não creio.
O independentismo catalão conseguiu menos de 48% nas eleições de 2015, o que lhe retira legitimidade para convocar o referendo da forma como o fez e não se crê que Puidgemont pudesse acreditar que, da parte das instituições europeias, teria outra resposta que não fosse a que obteve do presidente do Parlamento Europeu, António Tajani: “Os catalães são europeus porque são espanhóis”. Retrospetivamente, pergunto-me porque não terão sido assim tão firmes, os europeus, a dizer a croatas, eslovenos, bósnios, sérvios, macedónios e albano-kosovares que eram europeus porque eram jugoslavos. Outros tempos e outras vontades. Que mudam.
Como escreveu Joan Tapia no El Periódico da Catalunha a 16 de Setembro, “o independentismo enganou-se; o Estado não deveria fazê-lo”. Tapia interroga-se sobre como será possível gerir duas legalidades, a espanhola e a catalã, reivindicando do Estado aquilo que tem faltado, isto é, a inteligência no império da lei: “Aplicar a lei sem inteligência levaria ao desastre. E há coisas inquietantes que podem criar muita confusão. Processar 712 autarcas por ceder locais para o voto quando, no momento em que o fizeram, era legal (o Tribunal Constitucional ainda não tinha anulado a lei do referendo) e ameaçá-los com a polícia, é tudo menos proporcional”.
Muito grave, independentemente do que possa acontecer este domingo e nos dias seguintes, é a fratura que estes acontecimentos estão a provocar na sociedade catalã. Na mesma edição do matutino catalão, leio Emílio Pérez de Rozas: “Deixar de falar no tema em família, deixar de falar entre amigos no assunto, deixar de falar no trabalho sobre o processo e há muito que estabeleci a norma que, se sairmos para jantar, não se fala do assunto. Eu nunca acreditei que um grupo de whatsapp familiar, outro de amigos e outro de trabalho, se converteria na mãe de todas as batalhas”. E jamais pensaria que o “sobrinho maravilhoso”, independentista, rapaz capaz de levar nos ombros as pragas do mundo, “licenciado universitário, solidário como poucos, uma ONG com pernas”, o acabaria insultando no tal whatsapp familiar: “Até que eu lhe recordei que era o irmão do seu pai já falecido”. Ou seja, o processo catalão já impõe barreiras, estabelece linhas vermelhas entre os catalães, dentro das famílias, cidades e vilas da Catalunha. Com insultos de parte a parte que podem dificultar o espaço para o recuo e para a discussão serena e procura de pontes. Para Joan Subirats, cientista político da Universidade de Barcelona: “Estamos em plena voragem de linchamentos digitais. E a erosão do respeito entre familiares, vizinhos e concidadãos é mais difícil de recuperar do que a erosão política” (El País, 17.09.17). E como afirma Pere Vilanova, catedrático de Ciência Política da mesma Universidade de Barcelona, “quando se entra numa espiral de grande agitação, as expectativas de uns e outros tendem aceleradamente para o território da paixão colectiva”. E como se sentirão galegos e bascos, andaluzes e navarros, perante a forma como Madrid respondeu ao desafio independentista? Certamente com necessidade de refrear veleidades semelhantes mas, ao mesmo tempo, com uma interrogação que os assaltará: é num Estado (de nações) assim que quero estar?
Neste contexto, Rajoy perdeu, arrastando para a derrota o constitucionalismo espanholista. Ao contrário do que fez nas negociações pós-eleitorais, o presidente do Governo perdeu aqui uma ótima oportunidade para voltar a estar calado. E quieto. Aprendendo com o Governo iraquiano no caso do referendo no Curdistão. Ou com o seu colega Cameron no caso do escocês. Não esteve calado. Chegou a dizer: “Não vamos aceitar o que vocês propõem, não subestimem a força da democracia espanhola, é muito forte, Espanha é uma grande nação”. E, em tom de ameaça: “Vão obrigar-nos a chegar aonde não queremos”. O nacionalismo sérvio é simbolizado por uma frase dita no Kosovo por Slobodan Milosevic em 1989: “Nunca mais voltam a bater num sérvio” (depois de lhe ter sido apresentado um velhote, alegadamente agredido pela polícia, na altura, de maioria albanesa). Serão assim retóricas tão diferentes? Por estas e por outras, mais catalães terão vontade de votar este domingo.
Se é verdade, como afirma Juan-José Lopez Burniol, no La Vanguardia de 16 de Setembro, que “todos os dirigentes – por ação e omissão – deixaram apodrecer um problema difícil mas não insolúvel”, creio fazer ainda mais sentido a afirmação de Carles Casajuana na mesma página da edição referida do mesmo matutino: “Custa ver como se pode restabelecer a confiança mútua sem dar, de um modo ou de outro, a palavra aos catalães”. Entre independentistas e constitucionalistas, “unanimidade só há num aspeto: a situação é grave e ninguém sabe como vai terminar”, escrevia Iñigo Dominguez no El País. E, afinal, a Bósnia é aqui tão perto…
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico