O barquinho de papel

Um projecto corajoso e admirável, com a participação de centenas de cantores amadores que fizeram um grande trabalho. Faltou apenas uma música com coragem à altura.

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Uma ópera comunitária, no sentido que lhe dá o compositor Jonathan Dove, é um espectáculo onde os intérpretes são tão importantes como o público. Fazia sentido, pois, aquela sala tão cheia, quase a abarrotar, no último dia de O Monstro no Labirinto. Os espectadores entraram disponíveis, atentos, curiosos, no Grande Auditório da Gulbenkian: já quase conquistados antes de terem ouvido uma nota só, prontos a participar se fosse preciso. E foi. Fizemos um barquinho simbólico de papel, seguindo as instruções de uma criança. Um barquinho que nos veio lembrar de que há algo muito importante que é preciso fazer perante a opressão, o racismo, a subjugação e a morte evitável de milhares de pessoas.

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Uma ópera comunitária, no sentido que lhe dá o compositor Jonathan Dove, é um espectáculo onde os intérpretes são tão importantes como o público. Fazia sentido, pois, aquela sala tão cheia, quase a abarrotar, no último dia de O Monstro no Labirinto. Os espectadores entraram disponíveis, atentos, curiosos, no Grande Auditório da Gulbenkian: já quase conquistados antes de terem ouvido uma nota só, prontos a participar se fosse preciso. E foi. Fizemos um barquinho simbólico de papel, seguindo as instruções de uma criança. Um barquinho que nos veio lembrar de que há algo muito importante que é preciso fazer perante a opressão, o racismo, a subjugação e a morte evitável de milhares de pessoas.

Este espectáculo ambicioso contou, para além disso, com a colaboração de nove coros diferentes, músicos amadores e profissionais, com cerca de 300 pessoas no total, para não falar de um grupo grande de produção e assistência técnica que um projecto destes exige.

O Monstro no Labirinto abre em silêncio, com uma forte imagem de um trabalhador desenhando, com um carrinho de mão, um terreno de jogo. Um campo de futebol? Percebemos que sim, quando uma criança entra com uma bola e a coloca ao centro, antes da entrada do Rei Minos (brilhante neste papel esteve o actor Fernando Luís). Mas este campo será palco, costa, prisão e labirinto ao longo do espectáculo, à medida que as multidões o ocupam.

São centenas em palco, numa coreografia extremamente bem conseguida pela inteligente encenação de Marie-Eve Signeyrole, que consegue ainda outra proeza: a integração de vídeo em tempo real (e “real em vídeo”, num momento importante do espectáculo, quando vemos refugiados “reais” na tela, numa viagem de barco) de uma forma em que nada parece a mais ou deslocado, perigos frequentes dos espectáculos multimédia. Na bem resolvida versão de Tiago Marques, este Monstro no Labirinto era falado em português, o que também é excepção na produção operática por estas bandas.

A ambição de O Monstro no Labirinto passava ainda pela sua intenção política, de denúncia do “drama dos refugiados”, num apelo urgente contra a indiferença. Mas as boas intenções não chegam. O final desta ópera comunitária é uma imensa desilusão. Não basta invocar “o sol que nos guia e alumia p'ra sempre”, com uma música relativamente complacente, juntando atenienses, crianças e jovens. Era preciso música mais forte, menos enternecida, para enfrentar o drama e o terror que se vive no Mar Mediterrâneo (e as fronteiras desenhadas pelos senhores da guerra). Há o perigo de sair de um espectáculo assumidamente político – e até corajoso - com o coração aquecido e a consciência tranquila. Dito isto, há que reconhecer não só o maravilhoso trabalho de todos os coros – que são verdadeiros protagonistas deste labirinto – como sublinhar a beleza da excelente primeira parte do espectáculo. A escrita coral de Jonathan Dove tem momentos de grande intensidade (e não só “eficácia”, como nas imitações de “para o labirinto vão” ou o caminho “com calma” no interior do labirinto). Nas vozes solistas, ouvimos o excelente desempenho de Carlos Cardoso (um tenor heróico como Teseu), Cátia Moreso (meio-soprano mais que dramático, no papel da Mãe do herói) e Rui Baeta (um Dédalo barítono melancólico). Mas aqui a composição é bem menos fascinante, apesar de alguns jogos de orquestração interessantes. Não deixa de ser curioso que a arte de Jonathan Dove seja muito mais bem conseguida no seu entrelaçamento dos coros amadores do que nos papéis de cantores que podem fazer tudo com a voz. Dédalo, sobretudo, poderia ser uma voz bem diferente e contribuir para dar mais força à mensagem social desta ópera. “O trilho é enganador”, diz Dédalo, o construtor do labirinto onde ele próprio se viu encarcerado...

Projecto admirável, portanto, a que não faltaram muitos e justos aplausos. Só faltava outra energia política que passaria pela própria música. Quer dizer, não basta fazer o tal barquinho de papel.