Os 13 mistérios de Tancos
Decorridos três meses sobre o desaparecimento de armas em Tancos pouco mais se sabe de que desapareceram armas em Tancos.
Passados três meses o que sabem os portugueses sobre o material de guerra que devia estar nos Paióis Nacionais de Tancos? Sabem que foi dado como desaparecido um pequeno arsenal de guerra com grande capacidade de destruição. Sabem também que este material era guardado de forma negligente. Mais recentemente ficaram a saber que a tese de roubo/assalto, logo apontada por militares e governantes de forma categórica, pode não ser a única. Afinal, pode até não ter havido roubo/assalto. As incertezas e os mistérios são muitos. As certezas são poucas, ou muito provavelmente nenhumas.
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Passados três meses o que sabem os portugueses sobre o material de guerra que devia estar nos Paióis Nacionais de Tancos? Sabem que foi dado como desaparecido um pequeno arsenal de guerra com grande capacidade de destruição. Sabem também que este material era guardado de forma negligente. Mais recentemente ficaram a saber que a tese de roubo/assalto, logo apontada por militares e governantes de forma categórica, pode não ser a única. Afinal, pode até não ter havido roubo/assalto. As incertezas e os mistérios são muitos. As certezas são poucas, ou muito provavelmente nenhumas.
O que aconteceu no dia 27 de Junho?
O Exército descobriu que faltava material de guerra em dois paioletes dos Paióis Nacionais de Tancos, em Vila Nova da Barquinha. Foi também detectado um buraco numa das velhas redes que protegem o perímetro militar. O sucedido foi comunicado ao país através de um comunicado do Exército no dia 28, que, porém, não pormenorizava o que tinha desaparecido.
O que está desaparecido?
Um pequeno arsenal de guerra com grande capacidade de destruição. Os portugueses só ficaram a conhecer o que realmente tinha desaparecido no dia 2 de Julho graças à publicação no jornal espanhol online El Español da lista do material desaparecido. No rol estão quase 1500 munições de nove milímetros, mais de 100 granadas de mão de diversas valências, 44 granadas-foguete antitanque de 66mm, várias cargas explosivas, nomeadamente explosivo plástico de elevada potência, e respectivos “gatilhos” para provocar a explosão. Pina Monteiro, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), revelaria mais tarde que o seu valor no mercado ronda os 32 mil euros. No mercado negro o valor é incalculável. Como é que os espanhóis tiveram conhecimento do material desaparecido? Mistério.
O armamento foi roubado?
Este é um dos grandes mistérios. Logo após terem conhecimento do desaparecimento do armamento, os responsáveis militares e políticos garantiram que o material tinha sido roubado. Nos bastidores, iam surgindo rumores de que podia não ser bem assim. No dia 10 deste mês, numa entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, o ministro da defesa, Azeredo Lopes, deu viva voz a todos os rumores que apontavam sentido contrário ao do roubo.
“Sei que há um furo na cerca e que foi declarado o desaparecimento de material militar. Não sou investigador criminal. Não quero saber se foi A ou B, se foi de dentro ou de fora. O que sei é que material que estava à guarda do Exército desapareceu. Quero saber por todas as razões — porque, se se verificar que houve cumplicidades internas, isso é muito preocupante. Quero saber como cidadão e como ministro da Defesa Nacional como é que isto pôde acontecer, mas não sou investigador e não tenho sequer o direito de me intrometer na investigação que estava a cargo da PJ militar e que foi depois assumida pela PJ”, explicou. “No limite”, acrescentou, “pode não ter havido furto nenhum”, porque “não existe prova visual, nem testemunhal, nem confissão.”
Na semana passada, num debate no Parlamento, Azeredo Lopes foi questionado sobre estas afirmações por vários partidos e nada disse.
O Presidente da República, que desde o primeiro minuto alinhou na tese do roubo e por diversas vezes pediu celeridade na investigação, mudou ligeiramente o discurso no último domingo. Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que é necessário apurar “se houve ou não actuação criminal, em que é que se traduziu e quem são os responsáveis”.
Quem sempre desconfiou da hipótese de assalto foi o presidente da Associação 25 de Abril. Num texto enviado aos membros da associação, logo a 6 de Julho, Vasco Lourenço diz que a história de Tancos “está muito mal contada”. Para o capitão de Abril, “o presumível buraco na rede de protecção não passa disso mesmo, um simples buraco, e não convence ninguém de que não foi posto apenas para disfarçar”.
Vasco Lourenço coloca várias questões: “Quando se deu o desaparecimento do material?” Ou como desapareceu? “Todo de uma vez ou (...) por várias vezes e durante um período concreto de tempo? E, neste caso, durante quanto tempo durou o desaparecimento do material?” Ou ainda (“hipótese mais grave”): o material desaparecido “chegou a entrar nos paióis ou foi apenas acrescentado à carga dos mesmos”?
Fala ainda da hipótese, “que acontece muitas vezes”, de o material ter sido usado em instrução e não ter sido “justificado” — ou seja, houve um problema de inventário.
O tenente-coronel António Mota, presidente da Associação de Oficiais da Forças Armadas (AOFA), apresenta, além da hipótese de roubo, mais duas teses que vão ao encontro das de Vasco Lourenço. Há a possibilidade de o material nunca sequer ter entrado nos paióis, ou de ter sido utilizado, em acções de formação, de instrução, e não ter sido descarregado [nos inventários do Exército]”, afirmou numa entrevista à RTP, no dia 10 deste mês.
Quem é o responsável pela segurança do material militar?
Há dois tipos de responsabilidade, a política/governamental e a militar. A Constituição é clara: “É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional”, nomeadamente os meios financeiros, de forma a garantir que as Forças Armadas possam garantir “a defesa militar da República”.
A segurança dos paióis nacionais era eficaz?
Não. Em primeiro lugar, se de facto houve um roubo, ele não se teria verificado se a segurança fosse eficaz. O pior é que se ficou a saber que a segurança não só não era eficaz, como era, no mínimo, negligente. O sistema de videovigilância dos Paióis Nacionais de Tancos estava avariado há cinco anos; as rondas de militares não eram regulares e os militares que a faziam não transportavam munições nas armas; uma das viaturas usadas para as rondas estava avariada havia dias e uma boa parte das redes de protecção dos paióis estava decrépita e era facilmente violável.
Governo e militares tinham conhecimento destes problemas?
Azeredo Lopes garantiu a 7 de Julho, na Comissão Parlamentar de Defesa, que, “ao contrário do que alguns fizeram crer”, não tinha “qualquer conhecimento de nenhuma situação grave ou urgente que fosse necessário corrigir relativamente à segurança dos paióis” de Tancos. “Não tinha em minha posse nenhum pedido, nenhuma chamada de atenção que identificasse uma situação grave ou urgente que pudesse existir nestes ou noutros paióis.”
Afirmações feitas um dia depois de o DN ter revelado com base em documentos oficiais que, em Março, o Exército tinha pedido autorização ao ministro da Defesa para avançar com uma obra nas vedações dos paióis de Tancos no valor de cerca de 338 mil euros. Revelava ainda que o pedido da Direcção das Finanças do Exército para “reconstrução” das vedações esteve parado 73 dias na gaveta de ministro, tendo sido despachado apenas a 5 de Junho e publicado em Diário da República no dia 30 de Junho. O gabinete de Azeredo Lopes, lembra, porém, que o Exército demorou mais de um mês a pedir “concordância prévia” da Defesa, obrigatória por lei para aquela despesa — ou seja, os responsáveis deste ramo das Forças Armadas, apesar de haver verba para a obra, demoraram ainda 40 dias até pedirem a luz verde ao ministro (de 24 de Março a 3 de Maio, data que o pedido chegou ao Ministério da Defesa).
Questionado na audição parlamentar de 7 de Julho se os pedidos para reparação das redes que autorizou não o alertaram de que algo pudesse estar mal, Azeredo Lopes assegurou que não, pois não passou de um “procedimento administrativo”, ou de um pedido para a realização de “uma empreitada”.
Quanto aos restantes problemas, nomeadamente a avaria da videovigilância, é óbvio que eram do conhecimento das principais chefias militares. Se deram conta disso ao anterior Governo e ao actual é algo que ainda não foi revelado. A 5 de Julho o PÚBLICO adiantou que o Exército gastou, desde 2015, cerca de 400 mil euros em sistemas de videovigilância para várias instalações militares, mas a base de Tancos, que guarda boa parte do material de guerra português, ficou excluída. Outro mistério.
Caso a tese de assalto a Tancos seja a verdadeira este é o primeiro roubo de material de guerra nos paióis?
Na audição na Comissão Parlamentar de Defesa a Azeredo Lopes a 7 de Julho, Carlos Costa Neves, do PSD, e João Vasconcelos, do BE, revelaram que já houve mais assaltos a Tancos que estão a ser julgados. Até hoje ninguém desmentiu estas afirmações. Mas, na verdade, também ninguém revelou que assaltos foram esses, quando aconteceram e quem está a ser julgado.
Porém, o PÚBLICO apurou que a fonte dos deputados é segura, já que estes dados foram divulgados aos parlamentares pelo chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), Rovisco Duarte, na audição parlamentar à porta fechada de 5 de Julho, igualmente sobre o assalto a Tancos.
O material roubado está operacional?
Outro mistério. Logo após ser conhecido o desaparecimento, o material em falta foi considerado por militares e Governo como “operacional e activo” e muito perigoso, se usado por mãos criminosas. Equipamento letal, com explosivos capazes de destruir um prédio de vários andares, a foguetes antitanque letais para todo o tipo de veículos rodoviários e aeronaves.
Só que, a 11 de Julho, o chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), Pina Monteiro, diria em São Bento que parte do material desaparecido, especialmente o mais perigoso, tinha sido “seleccionado para abate”.
Após uma reunião com o primeiro-ministro, ministro da Defesa e os chefes dos três ramos militares, o chefe de Estado-Maior General afirmaria que os lança-granadas foguete desaparecidos “provavelmente não terão possibilidade de ser utilizados com eficácia”. “Como dizemos em gíria militar, já estavam seleccionados para serem abatidos.”
Já a 25 de Julho, numa audição na Comissão Parlamentar de Defesa, o chefe de Estado-Maior dava praticamente o dito por não dito. Afinal, os lança-granadas desaparecidos continuavam a ser uma “arma perigosa”: “Aquilo tem uma granada, que não é fácil de utilizar, porque é de efeito dirigido, e por isso eu disse que não poderiam ser utilizados com eficácia e a sua eficácia é usá-los para aquilo a que foram dirigidos, que é destruir viaturas blindadas (...). É uma arma perigosa e muito eficaz funcionando.”
Vários deputados disseram ter saído da audição “confusos”.
Há suspeitos pelo desaparecimento das armas?
Há e para todos os gostos, o problema é que todos eles são meras hipóteses não oficiais. On the record e off the record já surgiram nomes de tudo o que é referência criminal a nível nacional e internacional. Desde o crime organizado e violento com rede mundial aos seguranças da noite do Porto, passando por grupos extremistas islâmicos, já quase tudo foi colocado na lista de hipóteses. Oficialmente não há nenhum suspeito identificado.
Foi detectado, avistado ou apreendido em Portugal ou no estrangeiro algum do material desaparecido?
Que tenha sido do conhecimento público, não.
O que foi feito para descobrir o que aconteceu?
O Ministério Público (MP) ordenou de imediato a abertura de um inquérito com “natureza urgente”. A 4 de Julho, o MP decidiu que o inquérito ficaria a cargo do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), coadjuvado pela PJ com a colaboração da PJ Militar. Foi também lançado um alerta a nível internacional com pedidos de colaboração a todas as polícias, no âmbito da NATO, Interpol e Europol.
Já o ministro da Defesa pediu quatro relatórios sobre a segurança dos paióis nacionais: um a cada ramo das Forças Armadas e outro à Inspecção-Geral da Defesa Nacional.
No Exército foram também abertos três processos de averiguações internas ordenados pelo chefe do Estado-Maior do Exército (CEME).
Estes processos de averiguações centraram-se no Regimento de Infantaria 1, a unidade militar que na altura do assalto era a responsável pela segurança dos paióis, e incidiram sobre a videovigilância, a intrusão e a gestão de cargas (material ali armazenado).
Já se conhece algum resultado da investigação, dos relatórios e inquéritos?
Não. A investigação ainda decorre. Os relatórios pedidos pelo ministro já estão na sua posse, mas nada sobre o conteúdo foi ainda revelado. Azeredo Lopes tem, aliás, sido frequentemente criticado pela Comissão Parlamentar de Defesa por não lhe fornecer informação. Os processos de averiguação do Exército também já estão concluídos, mas os resultados também não são conhecidos.
Há mais algum relatório conhecido?
O semanário Expresso noticiou no passado sábado a existência de um um relatório dos serviços de informações onde se acusava Azeredo Lopes de ter gerido o roubo do armamento militar “com ligeireza quase imprudente”, acusando-o ainda de ter proferido “declarações arriscadas e de intenções duvidosas”. O Governo tem garantido que não conhece qualquer relatório desta natureza, e o Expresso garante que o mesmo existe. Ainda ontem, o Ministério da Defesa veio pedir que fosse feita a divulgação integral do relatório noticiado pelo Expresso.
Já alguém foi responsabilizado pelo desaparecimento das armas?
Não. Poucos dias após o desaparecimento do material, o chefe do Estado-Maior do Exército anunciou ter demitido os cinco comandantes das cinco unidades com responsabilidades nos paióis, mas, menos de 15 dias depois, foram readmitidos nos mesmos cargos.
Foram também instaurados três processos disciplinares a três militares do Regimento de Engenheiria 1 no âmbito das investigações pedidas pelo CEME, mas até ao momento ninguém foi acusado.
Que outras medidas foram tomadas após o desaparecimento das armas?
O Governo decidiu tirar os Paióis Nacionais de Tancos e redistribuí-los por outras unidades. Já na semana passada, o ministro da Defesa anunciou várias medidas que visam reforçar as condições de segurança das instalações dedicadas ao armazenamento de material militar sensível (armamento, munições e explosivos).
Numa delas, Azeredo Lopes determinou que o chefe do Estado-Maior General, em coordenação com os chefes dos ramos militares, produza no prazo de 60 dias um normativo único para o manuseamento e transporte de material militar sensível.
Azeredo Lopes determinou também a elaboração, no prazo de 90 dias, de procedimentos comuns para o empenhamento dos militares na protecção de infra-estruturas que armazenam este tipo de equipamentos.
Já a Secretaria-Geral do Ministério da Defesa Nacional “deverá desenvolver, através do Centro de Dados da Defesa Nacional e em coordenação com os ramos [militares], no prazo de 180 dias, um sistema de informação comum para controlo efectivo de material militar sensível”.
Ao nível das infra-estruturas, foi decidida a continuação pelos ramos militares “do desenvolvimento de acções de concentração de material militar e a realização prioritária de obras nas várias instalações”, como a “reabilitação dos meios complementares de segurança (por exemplo, vedações e videovigilância)”; e “a melhoria das condições de habitabilidade dos militares empenhados na vigilância destas instalações”.
No que respeita aos recursos humanos, o ministro determinou “o aperfeiçoamento dos processos de selecção, certificação, formação e treino dos militares dedicados a funções de segurança, recorrendo a acções de formação e treino de carácter transversal”.