Um monstro contra a indiferença, a ópera social de Jonathan Dove com 300 cantores e músicos em palco

O Monstro no Labirinto, que esta quarta-feira se estreia na Gulbenkian, contém uma reflexão política urgente, a partir do mito do Minotauro.

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Teseu desafia o Rei Minos, enquanto a democracia enfrenta os seus monstros. O mito dá o mote, mas O Monstro no Labirinto, a última ópera comunitária de Jonathan Dove numa encenação de Marie-Eve Signeyrole, é muito mais do que a história do Rei Minos e do labirinto que mandou construir em Creta, com o Minotauro lá dentro, para se vingar dos atenienses. Entre esta quarta-feira e sexta-feira esta ópera, que já está esgotada para os três dias, vai juntar no palco do Grande Auditório da Gulbenkian, em Lisboa, mais de 300 cantores e músicos, amadores e profissionais. 

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Teseu desafia o Rei Minos, enquanto a democracia enfrenta os seus monstros. O mito dá o mote, mas O Monstro no Labirinto, a última ópera comunitária de Jonathan Dove numa encenação de Marie-Eve Signeyrole, é muito mais do que a história do Rei Minos e do labirinto que mandou construir em Creta, com o Minotauro lá dentro, para se vingar dos atenienses. Entre esta quarta-feira e sexta-feira esta ópera, que já está esgotada para os três dias, vai juntar no palco do Grande Auditório da Gulbenkian, em Lisboa, mais de 300 cantores e músicos, amadores e profissionais. 

A encenadora lembra que “os mitos foram utilizados pelo poder para se justificar e dominar”, mas em O Monstro no Labirinto procura-se, inversamente, denunciar e reflectir sobre a actualidade política, cruzando o mito grego com formas actuais de violência e opressão.

A questão dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo para chegar à Europa na expectativa de uma vida melhor, arriscando tudo, é uma das analogias centrais nesta produção da ópera de Jonathan Dove. Também os atenienses foram, no mito grego, em barcos até Creta, presos, escravizados e humilhados, arriscando a morte.

Marie-Eve Signeyrole deseja que esta encenação “ressoe nas pessoas, e que haja eco em nós do que se passa na actualidade”. “Penso que é muito actual a ideia do sacrifício dos jovens pelas faltas da geração precedente”, diz a encenadora. Mas, para ela, esta ópera é também “uma reflexão sobre todas as formas de ditadura” e sobre um ciclo vicioso: “A vingança que engendra violência que engendra humilhação e que gera uma nova vingança. E assim por diante.” O drama do Mediterrâneo é um motivo central nesta versão, e “não está directamente na música — é uma ideia da mise-en-scène”, explica Signeyrole. Para além disso, a encenadora quis fazer outros paralelos com a história do terrível Rei Minos subjugando os atenienses: “Continua a haver morte na escravatura. E continua a haver exploração.” Marie-Eve dá como exemplo os trabalhadores que constroem actualmente os estádios do Mundial de Futebol no Qatar. “Esta ópera tem também seres humanos que são explorados por outros homens”, um problema global que persiste. Por isso, diz, “esta ópera pode ressoar em nós em diferentes níveis”.

Uma ópera comunitária

O Monstro no Labirinto junta centenas de músicos e cantores. Ao lado da Orquestra Gulbenkian estão jovens músicos de nível superior, que realizam um estágio. E, para além do Coro Gulbenkian, há a participação de vários coros de crianças, jovens e adultos. São eles o Coro Regina Coeli de Lisboa, o Polyphonia Schola Cantorum, o Spatium Vocale, o Coro de Câmara da Academia de Amadores de Música, o Coro Juvenil da Academia de Música de Santa Cecília, o Coro Juvenil Euterpe, o Musaico e o Coro Infantil da Universidade de Lisboa. Mais de 250 cantores que foram ensaiados pelos respectivos maestros e depois por Sérgio Fontão, responsável pela difícil tarefa de juntar toda esta gente, amadores e profissionais. O maestro explica-nos como funcionou este trabalho “monstro”: “Começámos no ano passado. Ao longo do ano cada maestro ensaiou os coros pelos seus meios. Houve uma articulação entre os maestros e depois encontros na fundação com todos os envolvidos.” Foi preciso resolver dificuldades práticas, como refere Sérgio Fontão: “A complexidade foi ensaiar 300 pessoas. Era preciso ser ao fim-de-semana, quando os estudantes saem das escolas e os adultos dos seus trabalhos. Musical e cenicamente é bastante complexo, é uma ópera com uma logística bastante difícil. Ainda por cima é a primeira vez que participam num projecto de ópera assim, a maioria das pessoas não tinha experiência prévia.” O maestro dos coros diz que, apesar de tudo, as dificuldades foram superadas. O segredo? “O empenho. Muito, muito, muito”, diz Sérgio Fontão, com um sorriso nos lábios.

“Estarmos juntos não é evidente”

O Monstro no Labirinto é um projecto encomendado pela Orquestra Sinfónica de Londres, a Filarmónica de Berlim e o Festival d’Aix-en-Provence ao compositor britânico Jonathan Dove: uma ópera comunitária, multimedia (com vídeo em tempo real) e “para todos” que junta em palco uma orquestra, três solistas, um narrador e mais de 300 coralistas e instrumentistas, de todas as idades e de todo o país. Foi estreada em Julho de 2015 no Festival d’Aix en-Provence, e apresentada em Lille, Montpellier, Londres e Berlim. “Houve outras versões desta ópera mais próximas do mito, mas esta tenta ressoar mais em nós. Creio que era importante que nos fizesse pensar”, diz a encenadora Marie-Eve Signeyrole. “Como tem tantas vozes, isso permite-nos jogar com a ideia de colectivo. É gente que traz consigo uma ideia e canta essa ideia”, acrescenta. Ela fala-nos também das questões que se levantam quando se reúnem amadores e profissionais: “Por vezes os amadores não sabem bem o que estão a dar a ver – é preciso ajudar nisso, dar confiança, assegurar-lhes que estão a fazer bem. Não há tempo para formar, mas não é preciso isso para fazer teatro. Aqui a base assenta não sobre uma técnica vocal e teatral adquirida, mas sobre o vivido – é preciso procurar na própria experiência das pessoas.” Outra dificuldade é no corpo dos cantores/actores: “Muitos não têm consciência do que faz o corpo e do que pode fazer. O corpo diz muito, não é só o que se diz e o que se canta. É preciso estar à vontade no seu corpo.” Há ainda um outro problema, que se põe quando se canta colectivamente, mas que também se põe nas formas de organização da sociedade. “Têm de ser indivíduos e ser um grupo ao mesmo tempo. Estarmos juntos não é uma coisa evidente”, diz Signeyrole. Apesar de tudo, há uma equipa em palco, também ela empenhada, a ajudar. “É um projecto que precisa de apoio de forças humanas. É preciso energia, mas também muita concentração e disciplina”, explica a encenadora.

Este projecto tem gente de todas as gerações – “também é social neste sentido”, diz Signeyrole. “Uma coisa curiosa foi perceber que era preciso falar inglês com os mais novos, e podíamos falar francês com os mais velhos”, diz. Para a encenadora, é preciso recuperar a ideia da ópera como qualquer coisa de democrático. E que um projecto destes é a melhor maneira de o fazer: “Um projecto assim permite abordar a ópera através de um outro repertório e fazer as pessoas interessarem-se pela ópera.” Ainda por cima, uma ópera que propõe uma reflexão sobre a democracia. “Tem todo o sentido”, diz Signeyrole, desdobrando rapidamente as ideias enquanto falamos numa sala da Fundação Gulbenkian.

Para o maestro ensaiador dos coros, há também uma qualidade musical que resulta do tipo de projecto e das capacidades de Jonathan Dove como compositor. “O que esta ópera tem de sumamente interessante é que Dove escreve música ao alcance das possibilidades dos diferentes grupos, mas é música que não deixa de ser desafiante. Não há facilitismo, nem houve qualquer tipo de condescendência. Exigimos o mesmo dos profissionais e dos amadores, o grau de exigência foi o mesmo, sem concessões”, garante Sérgio Fontão. Para ele, este tipo de ópera insere-se numa tradição inglesa de fazer música para a comunidade. “E a junção é mais interessante do que a soma das partes. O resultado global é homogéneo e não uma manta de retalhos”, diz.

Não há só um monstro

Para além de todos os cantores, há um actor profissional nesta produção. Ele é Fernando Luís, um actor com larga experiência noutros campos, mas nunca na ópera: “É a quinta participação num projecto na Fundação Gulbenkian, mas é a primeira vez que participo numa ópera.” Desta vez, ele é o terrível Rei Minos. Os atenienses matam o seu filho e ele, por vingança, escraviza e sacrifica as crianças. “O que torna interessante a ópera é o paralelo entre a tragédia e o que está a acontecer com os imigrantes tentando entrar na Europa. Também foi uma das razões pela qual eu aceitei fazer este projecto”, diz o actor. Fazer este Rei Minos foi um desafio, “porque é um monstro e tem um peso dramático muito grande”. “É um homem que obriga outros a trabalhar, e que consegue ter poder sobre eles. O Rei Minos é uma personagem violenta que vai impulsionar toda a tragédia. Tem momentos muito dramáticos.” Para Fernando Luís “foi um prazer muito grande” entrar neste projecto: “É bom fugir um pouco ao meu percurso, que tem sido muito mais na televisão e no cinema, e participar num projecto destes é uma mais-valia.”

Mas o Rei Minos não é o único monstro nesta ópera de Jonathan Dove. “Não são só bons e maus, não é um espectáculo maniqueísta. São personagens complexas que têm bem e mal”, explica-nos a encenadora. “Quando se combate um monstro, há um perigo: não se pode ficar igual ao monstro. Populações inteiras podem morrer ou fazer coisas monstruosas”, diz Marie-Eve Signeyrole, deixando bem claro que está a propor uma reflexão mais profunda sobre a sociedade actual: “Mesmo em democracia há formas de ditadura dissimuladas. E há homens que defendem ideias que escondem outras ideias. É preciso desconfiar das palavras. O monstro no labirinto é um homem só perante 300. Também é uma ópera sobre o poder das palavras e das ideias que levam os outros a pensar determinadas coisas.”

Um entusiasmo contra a indiferença

No ensaio da passada segunda-feira sentia-se já um nervoso miudinho, à medida que se iam trabalhando os detalhes antes de mais um ensaio corrido. “Há um entusiasmo no ar, uma entrega, um inexcedível empenhamento”, diz Sérgio Fontão. Para ele “o processo, nesta ópera, é muito importante”. Trata-se de proporcionar uma vivência do processo criativo que é novo ou não faz parte das rotinas daqueles jovens e adultos. Fontão crê que esta experiência será muito enriquecedora para todos: “Para crianças e jovens pode ser um incentivo grande à opção por uma carreira artística ou pelo menos uma experiência que os vai marcar para o resto das suas vidas. Para os adultos tenho a certeza de que contribui para criar um elo muito mais forte com a ópera. Nesse sentido, contribui para criação de um público mais informado, de massa crítica preciosa para o desenvolvimento de qualquer país.”

Sérgio Fontão destaca ainda o carácter interventivo e social desta ópera, de outra forma: “Somos bombardeados com notícias todos os dias e isso pode criar indiferença. Esta ópera contribui para lutar contra esta indiferença. Esse é um dos grandes méritos do espectáculo. Quando a arte toca na realidade, não nos deixa indiferentes.”