As contradições de um ajuste directo na Câmara de Lisboa

Ajuste directo das obras de S. Pedro de Alcântara começou a ser preparado antes de a câmara conhecer um dos relatórios com que justificou a “urgência imperiosa”. Contradições do processo incluem um aumento de mais de um milhão de euros no preço da empreitada.

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As obras de estabilização do miradouro de S. Pedro de Alcântara já estão a decorrer Miguel Madeira

A Câmara de Lisboa convidou a empresa Teixeira Duarte, em Maio, a apresentar uma proposta de consolidação do Miradouro de S. Pedro de Alcântara com o preço base de quatro milhões de euros. O convite, com esse montante, foi aprovado pela câmara a 25 de Maio, juntamente com a proposta de recurso a ajuste directo (sem concurso público) subscrita pelo vereador Manuel Salgado. Nessa proposta, porém, constava o preço de 5.180.000 de euros. Salgado diz que o preço foi “corrigido” dois dias antes da aprovação camarária.

A empreitada foi contratada por ajuste directo, justificado pela sua “urgência imperiosa”, mas a decisão de recorrer a essa figura foi tomada antes de o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) emitir o parecer que lhe havia sido solicitado. O parecer depois dado não aponta no sentido de qualquer perigo iminente, mas foi usado pela câmara para reforçar a fundamentação legal do ajuste directo por “urgência imperiosa”.

O processo que levou à contratação da empreitada actualmente em curso teve início a 11 de Maio de 2016. Nesse dia, atendendo à situação do miradouro, que os serviços camarários monitorizavam desde 2006, o município contratou a empresa Jetsj – Geologia Lda. para elaborar, em 60 dias, o “projecto de execução para avaliação da segurança estrutural e geotécnica” do local. A encomenda constituiu o primeiro passo dado pelo Departamento de Projecto e Construção de Equipamentos (DPCE), da Direcção Municipal de Projecto e Obras (DMPO), com vista ao lançamento de um concurso para a consolidação do miradouro.

“Um erro dos serviços”

Foi nesse projecto, entregue em Dezembro último, cinco meses depois do fim do prazo, que os geólogos Alexandre Pinto e António Cristóvão consideraram “presumível admitir que, perante a ocorrência de um evento sísmico, os critérios de segurança e estabilidade da encosta e respectivas estruturas de suporte estejam seriamente comprometidos”. Dias depois, Salgado solicitou ao LNEC um “parecer sobre a estabilidade” do miradouro, com o objectivo de avaliar as conclusões da Jetsj.

Na posse do parecer do LNEC, recebido no fim de Março, e respaldando-se nele, o DPCE produziu, a 11 de Maio, uma informação, subscrita por uma jurista, na qual se justifica o recurso ao ajuste directo – documento que serviu de base à proposta aprovada a 25 de Maio. Nessa informação, a autora diz que o LNEC “confirma a evidência de movimento de terrenos em profundidade e a necessidade de estabilização do terreno”, acrescentando que “atentas as conclusões da avaliação da estabilidade efectuada pelos projectistas especialistas em geotecnia [Jetsj] e pelo LNEC (…) foi decidido superiormente a intervenção local com carácter de urgência (…)”.

Mais adiante salienta que “é opinião dos técnicos do município que a presente situação de instabilidade e periculosidade geológica dos terrenos ao nível do subsolo do miradouro não é compatível com um procedimento sob a forma de concurso público, uma vez que este (…) implicaria o decurso de um procedimento contratual de cerca de seis meses, colocando em risco a defesa e a satisfação do interesse público de protecção da vida e da integridade de pessoas e bens”. Pelo que, afirma, “considera-se imprescindível” recorrer a um “procedimento por ajuste directo, por motivo de urgência imperiosa”.

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Catarina Oliveira Alves

A mesma informação – cujo texto é em grande parte reproduzido na proposta de Salgado e constitui um anexo da mesma – conclui com a indicação da Teixeira Duarte como única entidade a convidar. “Estão em causa trabalhos (…) extremamente técnicos (…), com custos agravados, dada a sua especificidade e complexidade, e, por conseguinte, bastante onerosos, circunstâncias essas que levam à fixação do preço base em quatro milhões de euros”, lê-se no texto.

A jurista explica que numa primeira fase “o valor previsto para a intervenção estrutural preconizada [pela Jetsj]” era de “cerca de cinco milhões de euros, acrescidos de mais de um milhão para remoção e reposição dos jardins existentes”, e que esse foi um dos factores que justificou a consulta ao LNEC. Terá sido, assim, o parecer deste laboratório, sugerindo – caso fosse decidido o reforço da estrutura – uma intervenção com menos movimentação de terras, que justificou a fixação do preço em quatro milhões de euros, muito abaixo do previsto.

Para lá da indicação dos quatro milhões constante desta informação, o convite à Teixeira Duarte refere também esse valor. No entanto, no corpo da proposta aprovada, com o voto contra do CDS, o preço base é de 5.180.000 de euros. Em declarações ao PÚBLICO, a directora da DMPO, Helena Bicho, justificou a distribuição aos vereadores dos anexos que referem os quatro milhões como “um erro dos serviços”.

Importa dizer que o convite aprovado não tem data e que um despacho da directora do DPCE, Ana Esteves, reza assim a 18 de Maio: “De acordo com o combinado com o gabinete do vereador Manuel Salgado e a senhora directora da DMPO, junto envio elementos para aprovação da proposta (…) Dada a urgência imposta pelo sr. presidente, o dr. Pedro Serranito já agendou para a reunião de 25 de Maio (extra agenda?). No entanto, aguardo ainda o valor correcto do orçamento e os elementos do projecto.”

Aprovada a proposta, o grupo de acompanhamento do ajuste directo, formado por técnicos do DPCE, reuniu-se a 2 de Junho para apreciar a resposta da Teixeira Duarte ao convite que lhe fora dirigido a 26 de Maio. De acordo com o “projecto de decisão” então elaborado, “verificou-se estarem reunidos os pressupostos para a adjudicação (…) ao concorrente Teixeira Duarte pelo valor de 5.179.873 euros”, com o prazo de 150 dias. O documento refere que “não houve lugar a convite à melhoria da proposta inicial apresentada pelo concorrente”. 

Dando seguimento a este “projecto de decisão”, a câmara aprovou a 8 de Junho, com os votos contra do CDS e do PSD, a adjudicação à Teixeira Duarte pelo valor solicitado pela empresa – menos 127 euros do que o preço do convite.

Os mails e o que disse o LNEC

Voltemos agora a Março deste ano, altura em que o DPCE aguardava o parecer do LNEC para lançar o concurso. Pelas 13h30 de 27 desse mês, uma das autoras do parecer do LNEC envia por mail a uma geóloga do DPCE a versão provisória desse documento, com 38 páginas mais anexos, que é igual à definitiva, enviada já em Abril. Dezasseis minutos depois, a técnica do DPCE reencaminha-a para Alexandre Pinto, sócio da Jetsj, e pede: “Assim que tenhas oportunidade de ler gostaria de trocar algumas impressões contigo, antes de fazer a informação interna para iniciar o procedimento de urgência imperiosa.” Passados 23 minutos, a Jetsj envia “os principais comentários preliminares ao parecer emitido pelo LNEC”.

É nestes comentários (cerca de 40 linhas) que o DPCE vai depois alicerçar a tese, não reflectida no parecer do LNEC, de que este partilha a opinião relativa à alegada existência de um perigo iminente de derrocada e à ausência de alternativa ao ajuste directo.

Isto quando o parecer do LNEC afirma coisas como esta: “Não existindo qualquer indício que aponte para uma perda de estabilidade da estrutura a curto ou médio prazo, propõe-se apenas o acompanhamento do seu comportamento através da instalação de alvos topográficos e de bases de clinómetros.” Considerações que levaram o reputado engenheiro e projectista Segadães Tavares a dizer ao jornal online Observador, no fim de Agosto, que as conclusões do LNEC “não são de molde a criar alarme”.

Mas independentemente do sentido que se queira retirar do parecer do LNEC, resulta dos mails citados que 16 minutos, no máximo, depois de ele chegar ao DPCE, os serviços da câmara já tinham instruções para preparar o procedimento de “urgência imperiosa”. Depreende-se daqui que a “determinação superior” para abandonar o concurso e recorrer ao ajuste directo foi produzida antes mesmo de ser conhecido o relatório do LNEC, servindo este apenas de pretexto.

As contradições de Salgado

Confrontado com estes factos e deduções, o gabinete de Manuel Salgado, através do Departamento de Comunicação da autarquia, contornou a questão, classificando-a de “incongruente” e afirmando que “a decisão, tomada em câmara, de recorrer a um ajuste directo é de Maio e os relatórios [do LNEC] são de Março e Abril” – como se a preparação do ajuste directo não tivesse começado pelo menos dois meses antes da sua aprovação formal.

Quanto ao facto de a informação do DPCE e do convite dirigido à Teixeira Duarte, que foram entregues aos vereadores como partes integrantes da proposta aprovada a 25 de Maio, fixarem o preço em quatro milhões de euros, a autarquia respondeu que esses documentos foram elaborados a 11 de Maio – num momento em que “ainda não tinha sido recebido integralmente o projecto de execução final, nem a respectiva estimativa orçamental”.

Tal projecto e estimativa não tinham sido recebidos de facto, nem podiam tê-lo sido, pela simples razão de que só foram contratados à Jetsj a 22 de Maio. Mas isso não impediu que, nesse mesmo dia, Salgado tenha proferido um despacho, sobre uma informação também datada desse dia, em que propõe o ajuste directo e o convite à Teixeira Duarte por 5.180.000 e não pelos 4.000.000 indicados 11 dias antes.

Esta informação, que veio sobrepor-se à da jurista do DPCE, foi subscrita por uma outra jurista da DMPO, pertencente ao Departamento de Gestão de Empreendimentos e Segurança (DGES) e não ao DPCE, pelo qual o processo decorrera até aí. No documento, que decalca quase todo o articulado do que que fora elaborado no DPCE, com a principal diferença de que enfatiza os alegados riscos de derrocada, o preço base sobe, sem explicação, de quatro milhões para 5.180.000. Este preço é indicado num segundo convite dirigido à Teixeira Duarte, igualmente sem data, mas que a câmara afirma ter sido enviado a 26 de Maio.

Na proposta entregue a 2 de Junho, a empresa pede os tais 5.179.873 euros, valor que acaba por ser aceite seis dias depois.

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Manuel Salgado defende que não há incongruências em todo o processo Daniel Rocha

Procurando justificar o aumento do preço, a câmara escreve nas respostas enviadas ao PÚBLICO que logo que foram recebidas da Jetsj as peças em falta (projecto final e estimativa orçamental) o preço de quatro milhões “foi corrigido quer na informação 1498/DGES/17 de 22 de Maio de 2017, quer na própria proposta para a câmara e respectivos anexos, incluindo o convite”. Esta explicação é, no entanto, desmentida pelo facto de tais peças terem sido recebidas a 24 de Maio, dois dias depois da alegada “correcção”.

Telefonicamente, a directora municipal Helena Bicho justificou depois esta situação, garantindo ao PÚBLICO que a 22 de Maio os seus serviços já sabiam, por contactos directos com a Jetsj, que a estimativa final seria de 5.180.000.

Os convites à concorrência

Resta dizer que a câmara efectuou uma “consulta preliminar informal” a quatro empresas, a qual, diz o gabinete de Salgado, “teve lugar logo após a recepção da primeira versão do projecto [da Jetsj], momento em que a câmara tomou conhecimento da gravidade da situação, ainda antes de formuladas e acolhidas as recomendações do LNEC”. A autarquia alega ainda que esses convites visaram “a preparação do procedimento de ajuste directo (…) numa atitude diligente de boa gestão pública, indo além das exigências legais”, que nestes casos não obrigam a consultar mais do que uma entidade.

Mas tendo em conta que a primeira versão do projecto foi entregue em 5 de Dezembro de 2016, cinco meses depois do fim do prazo contratado com a Jetsj, levanta-se uma outra questão: apontando as suas conclusões para um perigo iminente, não se percebe tal demora e muito menos que as consultas só tenham sido feitas no fim de Março – como confirmou ao PÚBLICO Helena Bicho – e não “logo após a recepção da primeira versão do projecto”.

Em todo o caso, fica claro que a decisão de avançar para o ajuste directo foi tomada antes de ser recebido o parecer do LNEC e é totalmente alheia ao seu conteúdo.

De acordo com os documentos facultados pelo município, foram consultadas, além da Teixeira Duarte, três empresas: ABB, Alves Ribeiro e San José. Segundo o gabinete de Salgado, a Teixeira Duarte “foi a que apresentou a proposta mais vantajosa, considerando não só os preços (…), mas também a sua reconhecida capacidade técnica e disponibilidade para entrada imediata em obra, como as circunstâncias impunham”.

As respostas à consulta, com datas de 4, 5 e 7 de Abril, indicam que a proposta mais baixa foi a da Alves Ribeiro (5.525.478 euros e dez meses de obra), seguindo-se a da Teixeira Duarte (5.855.655 euros e 12 meses de obra).

Acresce que, apesar de a câmara alegar que a segunda versão do projecto da Jetsj implica “uma solução mais dispendiosa”, a consulta feita com base nessa versão, dirigida apenas à Teixeira Duarte a 26 de Maio, deu origem a uma proposta de 5.179.873 euros, quase 700 mil euros abaixo da que fizera em Abril.

Em defesa do recurso ao ajuste directo, a directora municipal Helena Bicho assegura que todas as decisões tomadas foram exclusivamente técnicas e não políticas, admitindo, no entanto, que o processo foi “um tanto ou quanto caótico”, dado estar-se perante “uma emergência” em que ela própria e os responsáveis pelos seus serviços temiam a ocorrência, de um momento para o outro, de um desmoronamento no miradouro. “Se isso acontecesse, quem responderia civil e criminalmente éramos nós”, observa Helena Bicho.