Ryanair: o fim do estado de graça
O que se passa na Ryanair é muito mais do que um erro na marcação de férias dos pilotos.
Quando a Ryanair anunciou um crescimento de 10% no mês de agosto, nada fazia prever que apenas alguns dias depois estaria pelas ruas da amargura. Tudo parecia tão normal que, na mesma altura, lançou uma das suas habituais promoções (“escapadinhas de outono”), mas bastou o anúncio do cancelamento de 2000 voos, nos próximos dois meses, afetando 400.000 passageiros, para colocar a companhia irlandesa no “olho do furacão”.
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Quando a Ryanair anunciou um crescimento de 10% no mês de agosto, nada fazia prever que apenas alguns dias depois estaria pelas ruas da amargura. Tudo parecia tão normal que, na mesma altura, lançou uma das suas habituais promoções (“escapadinhas de outono”), mas bastou o anúncio do cancelamento de 2000 voos, nos próximos dois meses, afetando 400.000 passageiros, para colocar a companhia irlandesa no “olho do furacão”.
Escamoteando as verdadeiras razões, a Ryanair começou por apresentar a medida como destinada a melhorar os níveis de pontualidade. Mas ninguém acreditou, sendo obrigada a corrigir esta versão, colocando, numa segunda versão, as culpas em terceiros (greves do tráfego aéreo e efeitos do mau tempo). Mais uma vez, ninguém acreditou, pois, sendo verdade, toda a indústria seria afetada.
Com o fogo a alastrar, entrou então em cena o bombeiro-mor, Michael O’Leary, que, com um inédito ataque de humildade, pediu desculpa adiantando que, afinal, tudo se devera a um erro na marcação de férias dos pilotos. A verdade é que é muito mais do que isso, tratando-se de uma crise muito profunda.
A Ryanair atingiu em pouco mais de uma década a condição de líder do mercado intraeuropeu. A receita para o sucesso foi simples: preços mais baixos, pontualidade e marketing agressivo, a que acrescentou o tempero de uma liderança provocatória. Inebriado com o seu sucesso, O’Leary chegou mesmo a afirmar “It doesn´t matter if we treat you like shit; for cheap, you would come back again and again and again” ("Não importa se vos tratamos mal; se for barato, vocês voltam sempre").
O modelo low-cost veio para ficar e, ao mesmo tempo que nasciam como cogumelos outras concorrentes perfilhando idêntico modelo, as principais companhias tradicionais europeias — Lufthansa, Air France/KLM e IAG (British Airways/Iberia) — embora tardiamente, começaram a adaptar-se criando as suas próprias “low-cost”. Com tanta concorrência, a Ryanair, para manter os níveis de crescimento a que se habituara, começou a moderar os seus instintos belicosos, procurando atingir segmentos de mercado que aspiram a mais do que preços baixos.
O’Leary, fazendo recordar uma frase emblemática de Grouxo Marx (“estes são os meus princípios, se não gostar não faz mal, tenho outros”), anunciou então, ao seu estilo, a mudança: “If I only knew that being nice to costumers was so good to my business, I would have been nicer to costumers years ago” ("Se eu soubesse que ser simpático para os clientes era tão bom para o meu negócio, há anos que teria sido mais simpático para os clientes"). Não inventou nada, porque as novas tendências já tinham antecipado a progressiva aproximação entre os modelos em presença.
Recorde-se que a atual crise se assemelha à que foi vivida em setembro de 2016 pela Vueling, cujos sistemáticos atrasos de muitas horas, em especial no aeroporto de Barcelona, obrigaram à intervenção das autoridades locais, exigindo a imediata normalização da situação. Segundo a comunicação social espanhola, as causas desta crise foram “a sobreexploração dos recursos e o excesso de rotas”, tendo, em consequência, a companhia espanhola, subsidiária do Grupo IAG, sido obrigada a usar de maior prudência, reduzindo em 8,6% a sua oferta de 2017.
Onde falhou, então, a Ryanair? No fator humano. Tendo antecipado uma relação mais civilizada com os seus clientes, não fez o mesmo com o seu pessoal, insistindo, até à exaustão, num modelo baseado em condições de trabalho degradantes, com total precaridade e salários mais baixos.
Atenta, a Norwegian, a mais recente estrela do firmamento “low-cost” que está num processo de crescimento muito agressivo, necessitando de reforçar o seu quadro de pilotos, não teve dificuldade em “roubar” mais de uma centena de tripulantes à sua principal concorrente. Bastou oferecer condições de trabalho um pouco mais decentes. O´Leary desmente, mas já ninguém parece acreditar nele. Há mesmo, na imprensa internacional, quem trace cenários mais negros, falando na debandada nos últimos meses de um total de 700 pilotos, tanto para companhias europeias como para o Extremo Oriente, em especial para a China.
Ao longo dos últimos anos houve muitos rumores sobre as condições de trabalho na Ryanair, mas faltou sempre, certamente por medo, um rosto para credibilizar tais rumores. Para agravar, os movimentos sindicais europeus, salvo raras exceções, não deram sinal de preocupação quanto à gravidade de uma situação que, além do mais, contagiou toda a indústria.
Nestes dias, finalmente simpática com os seus clientes, a Ryanair promete muita informação, alternativas para os voos cancelados e indemnizações. Mas estes vão ter muito que penar pois, por mais sinceridade que possa existir, a companhia não tem no seu ADN cultura de serviço nem estruturas adequadas como, aliás, muito bem sabem todos os que já viveram situações anteriores de irregularidade.
Entretanto, a comissária europeia dos Transportes já veio recordar os direitos dos passageiros nestas situações, afirmando estar em contato com a Ryanair e dizendo “esperar que esta respeite plenamente esses direitos”. Justificam-se estes avisos em especial após a Deco já ter acusado a companhia de esconder alguns direitos dos passageiros afetados pelos cancelamentos. Mas a situação a que se chegou é também fruto da inércia das autoridades comunitárias, sempre muito interessadas em aprofundar a concorrência (fechando mesmo os olhos e os ouvidos a acusações de apoios públicos ilegais) ignorando interesses de consumidores e trabalhadores. Também a autoridade portuguesa (ANAC) veio a terreiro recomendar aos passageiros afetados para “apresentarem uma reclamação formal junto da companhia aérea”. Tarefa difícil, pois a comunicação da companhia irlandesa está orientada exclusivamente para vender. Em Portugal, não obstante a propaganda enfatizar muito o seu contributo na criação de postos de trabalho, haverá a maior das dificuldades em estabelecer contacto. Talvez só telefonicamente... diretamente para a Irlanda.
A Ryanair teve ao longo da sua história muitas situações de crise, embora a sua reputação nunca tenha sido tão atingida como neste mês de setembro. O estado de graça acabou e a partir de agora nada será como antes.
Uma nota final: o Porto foi a região que, em Portugal, mais investiu na Ryanair. Com inegável sucesso para o seu turismo, acrescente-se. Mas a companhia irlandesa não beneficiou menos, muito pelo contrário. Com o advento do turismo de massas, o Norte do país, e o Porto em particular, pelas suas qualidades beneficiariam sempre, mais cedo ou mais tarde, dos atuais fluxos turisticos. Regista-se que, na hora de cancelar voos, o aeroporto do Porto foi dos mais prejudicados pelos cancelamentos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico