Quando as cidades mais ricas são também as mais pobres
Embora as cidades sejam fonte de crescimento, emprego, educação e bem-estar, podem tornar-se, facilmente, em verdadeiras armadilhas de desigualdade.
Alguns dos dados recentes divulgados pela Oxfam acerca da desigualdade no mundo, são francamente assustadores. O um porcento da população mais rica detém mais riqueza do que o resto todo da população mundial. Nunca, desde o séc. XIX o mundo foi tão desigual.
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Alguns dos dados recentes divulgados pela Oxfam acerca da desigualdade no mundo, são francamente assustadores. O um porcento da população mais rica detém mais riqueza do que o resto todo da população mundial. Nunca, desde o séc. XIX o mundo foi tão desigual.
As desigualdades são gritantes entre continentes, entre países, e cada vez mais dentro dos próprios países - mas os dados acerca da desigualdade dentro das grandes cidades são, igualmente, aterradores.
A urbanização da Europa, muito ligada ao fenómeno da revolução industrial do séc. XVIII, acentuou-se ao longo dos séc. XIX e XX. Embora o tecido urbano europeu não se caracterize por megas cidades, caracteriza-se por um conjunto muito elevado de cidades de média-grande dimensão, com uma concentração de grandes empresas, grupos financeiros, instituições internacionais, universidades, etc. As cidades são obviamente polos de emprego e motores de crescimento.
A nível global, a OCDE prevê que, em 2050, cerca de 70% da população mundial viva em cidades e que estas tenderão a ser cada vez maiores. O que pode colocar problemas muito severos de desigualdade territorial na distribuição do rendimento.
A desigualdade nas cidades, nos países desenvolvidos, tende a ser francamente superior às desigualdades nacionais, de acordo, ainda, com dados da OCDE. E embora as cidades sejam fonte de crescimento, emprego, educação e bem-estar, podem tornar-se, facilmente, em verdadeiras armadilhas de desigualdade [1].
Alguns dados permitem-nos perceber melhor o alcance destas questões.
Em Londres, o rácio de salários entre os percentis 90 e 10 [2] é de cerca de 4,1, muito mais elevado do em que qualquer outra região de Inglaterra. O total da riqueza dos 10% mais pobres era 57% abaixo do resto da Grã-Bretanha, enquanto nos 10% mais ricos era 22% acima do resto do país. E se em termos de salário o rácio 90:10 é de 4,1, em termos de riqueza ronda os 173, quase 3 vezes mais do que o rácio no país. E, em Londres, a distribuição territorial das populações mais ricas e mais pobres é visível a olho nu, com uma falta de coesão territorial muito evidente.
No que diz respeito a Paris, a distribuição geográfica da população também conta uma história clara de desigualdades. Como um todo, Paris tem uma taxa de pobreza na casa dos 14% (próxima dos valores nacionais), mas quando olhamos para os vários “arrondissements” (bairros) a história é claramente diferente: os bairros mais pobres têm uma taxa de pobreza na casa dos 40%, enquanto nos mais ricos não ultrapassa os 9%.
A segregação dentro das cidades, medida pela desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza, mas também por níveis de educação e emprego, tem aumentado na maioria das cidades europeias. Dados mostram que mesmo nos países escandinavos este fenómeno tem alastrado, com pobres e ricos a viverem vidas paralelas em lados separados de um mesmo espaço urbano.
O aumento da segregação tem consequências a vários níveis. Além das questões de justiça social a perpetuação e agudização da segregação, promove a eclosão de conflitos sociais que se podem expressar de formas diversas; a falta de integração de alguns grupos e a incapacidade de combater a desigualdade provoca movimentos de ódio; cresce a xenofobia e o racismo e entra-se numa espiral de afastamento cada vez maior; a integração torna-se cada vez mais difícil com reações adversas de parte a parte.
Portugal, por razões que talvez valha a pena um dia discutir, tem ficado à margem de movimentos mais populistas e radicais. Mesmo em Lisboa, onde, a nível nacional, estas questões são mais prementes, não tem havido ondas de confrontos, nem radicalização de grupos e movimentos. No entanto não podemos continuar a ignorar algumas destas questões. É preciso aprofundar o tema, perceber o nível de desigualdade dentro das nossas cidades e perceber como é que essa desigualdade se está a traduzir em segregação territorial.
As cidades devem precisamente ser pensadas para promover a integração. Em ano de renovação de órgãos autárquicos esta questão deve ser posta na agenda. As políticas de habitação e transporte, de acesso à educação e à cultura, o adequado acesso aos serviços públicos (do qual a recolha de lixo é um bom exemplo) devem ser sempre pensados e avaliados pelo impacto que terão nesta segregação, e serão os instrumentos fundamentais para que as cidades não se transformem em armadilhas de desigualdade. A coesão territorial tem que ser um ponto chave na política municipal e urge fazer benchmarking com os bons exemplos e aprender com os maus exemplos, que se multiplicam na Europa.
[1] OECD report: “Making cities work for all: Data and actions for Inclusive Growth”, october 13, 2016
[2] Isto significa os 10% mais altos e os 10% mais baixos.
Francisca Guedes de Oliveira é membro do Conselho Científico e Estratégico do IPP (Instituto Políticas Públicas - Lisboa)
A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico
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