A praxe continua a dar a volta às alternativas
O Governo pediu às universidades que criassem programas de recepção aos novos alunos e estas responderam positivamente. Mas a tradição resiste em Coimbra, Porto e Lisboa.
Um grupo de estudantes alinhado faz a contagem dos degraus à medida que desce um lanço das escadas monumentais que dão acesso à alta universitária de Coimbra. Não é preciso conhecer profundamente a cidade para identificar um clássico desta altura do ano. Este é o momento da praxe académica para os novos alunos e as iniciativas do Governo e das instituições para tentar criar uma alternativa não a esvaziaram.
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Um grupo de estudantes alinhado faz a contagem dos degraus à medida que desce um lanço das escadas monumentais que dão acesso à alta universitária de Coimbra. Não é preciso conhecer profundamente a cidade para identificar um clássico desta altura do ano. Este é o momento da praxe académica para os novos alunos e as iniciativas do Governo e das instituições para tentar criar uma alternativa não a esvaziaram.
Tiago Rodrigues, que vai na terceira matrícula em Estudos Europeus e tem na mão uma colher de pau de proporções generosas, dirige o ritual. No objecto de madeira está gravada a inscrição “dura praxis, sed praxis”. “A praxe é dura, mas é praxe”, será a tradução. No entanto, segundo o estudante, naquele curso a praxe não é dura de todo. “Não metemos ninguém de quatro e não humilhamos ninguém”, assegura.
Quando lhe perguntamos quantos estudantes do 1.º ano participam nas praxes, Tiago Rodrigues olha para o grupo de estudantes e grita: “Caloiros, é autocontagem!” Da esquerda para a direita, cada um diz o seu número. São 13, em cerca de 30 que entraram este ano na licenciatura. Têm todos a opção de não vir e continuar a conviver com os colegas, garante.
Ali, o objectivo é a integração e que eles se conheçam melhor, explica, referindo, por exemplo, que as estrelas amarelas que trazem ao pescoço com a identificação de cada um servem para facilitar a socialização. Quando lhe dizemos que vamos falar com um estudante do 1.º ano, o “doutor” volta a virar-se para os estudantes. “Preciso de um caloiro voluntário!” A resposta aparentemente ensaiada vem na forma de coro: “Somos todos voluntários.”
Pedro Maia, estudante brasileiro que chegou este ano a Portugal para tirar a licenciatura, corrobora. Já sabia que ia encontrar a praxe, mas tinha receio de “que fosse mais pesado”, que o “obrigassem a beber”. Mas tem sido o contrário, conta, enquanto diz que a experiência “está a ser de integração”.
“Manual de sobrevivência”
As semanas mais fortes de praxe são, habitualmente, as duas últimas de Setembro. O ritual começou, no entanto, na semana passada, quando os estudantes se foram inscrever nos seus novos cursos. Nessa altura, foi denunciado o conteúdo de um Manual de Sobrevivência do Caloiro distribuído aos novos alunos da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP).
O director da FCUP, António Fernando da Silva, considerava então “impossível” que isso acontecesse dentro das instalações, já que a praxe está ali proibida há sete anos. Não é preciso, porém, andar mais do que umas dezenas de metros a partir da porta da faculdade para encontrar um grupo em plena praxe.
Em frente ao Teatro do Campo Alegre, sentados no chão, encontra-se um conjunto de alunos. Caloiros, presume-se. Vestem todos T-shirt preta com o logótipo da Universidade do Porto. Outro grupo de estudantes, trajando capa e batina, rodeia-os por completo. No meio deles, actua uma tuna em frente aos “caloiros”.
Aproximamo-nos. Dizem-nos que vão chamar a pessoa indicada para falar. É João Sousa, que se apresenta apenas como “estudante da Faculdade de Ciências”. Está trajado e explica-nos que estão ali alunos “de vários cursos” daquela faculdade, mas não diz de quais, nem em que número. “Como deve calcular não posso dizer mais nada”, disse. Só deixou de repetir esta frase para sublinhar que todas as pessoas presentes “querem estar cá”.
“Estava com medo”
“Vim porque quis”, confirmara, minutos antes, uma nova aluna da FCUP, a única que aceitou falar com o PÚBLICO. “É o meu primeiro dia”, conta-nos. Não quer dizer o seu nome. Diz apenas que entrou em Engenharia Física e que veio à praxe “por curiosidade”. “Também estava com medo, mas não é mau. Fazem-se jogos, cantam-se músicas. Nada de mais.”
Na baixa da cidade, nas traseiras do edifício da reitoria, há vários grupos de diferentes cursos em actividades de praxe. Metros adiante, perto dos Clérigos, ou na Praça Carlos Alberto, também os encontrámos.
Pelo segundo ano consecutivo, o ministro da Ciência e Ensino Superior, Manuel Heitor, recomendou às instituições que criassem alternativas para a integração dos novos alunos e até lançou um portal para agregar informações sobre os diferentes programas para “dar a volta à praxe”. Objectivo: acabar com as “manifestações de abuso” que acontecem por vezes nas recepções aos caloiros.
Os reitores — que nos últimos anos têm proibido actividades de praxe no interior das universidades — responderam positivamente e procuram outras formas de integrar quem chega. Na maior parte dos casos, as actividades concentraram-se na última semana, antes do arranque definitivo das aulas.
“A literatura científica diz-nos que a passagem para o ensino superior é um dos factores para garantir o sucesso dos estudantes”, contextualiza a pró-reitor do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Susana Carvalhosa, que tem formação em Psicologia. Criar condições para uma “transição positiva” foi o que levou a instituição a conceber o programa IUL-Come, que, na semana passada, recebeu os novos alunos, com momentos lúdicos, como uma festa ao pôr do Sol organizada pela associação de estudantes, e também formação. Os alunos foram organizados em equipas de cinco pessoas, todas de licenciaturas diferentes do ISCTE, e postos perante um problema com a sustentabilidade como “grande tema”, explica Carvalhosa. No último dia, trabalharam em projectos e soluções para o mesmo.
O IUL-Come não toma, porém, o lugar da praxe e é a própria reitoria a reconhecer isso. Ainda que a comissão de praxe não seja uma entidade organizada, os responsáveis do ISCTE reúnem-se com os seus membros. “Chamamos a atenção para as nossas preocupações com as acções que possam vir a desenvolver fora do campus”, explica. Dentro das instalações do instituto universitário, a praxe está proibida.
Na Universidade de Coimbra (UC), a alternativa à praxe também se faz através do projecto UC Plantas, lançado na quarta-feira. O Jardim Botânico distribui oito espécies de flora nativa da floresta portuguesa para que os estudantes do 1.º ano possam cuidar dela até ao próximo ano lectivo. Em frente a várias dezenas de estudantes, o director do Jardim Botânico, António Gouveia, explicou que as espécies disponíveis para adopção — que vão do sobreiro ao pinheiro-manso — “são plantas relativamente rústicas, habituadas a algum sofrimento, solos pobres e regas escassas”. Com cada vaso, foi também distribuído um manual que indica os cuidados a ter, como rega e exposição solar adequada a cada espécie.
O objectivo é que, no próximo ano lectivo, os estudantes que agora estão a entrar na UC regressem para devolver a planta e tragam consigo o seu afilhado, criando assim “dinâmicas de inclusão” que não passem pela praxe. Servirá depois para reflorestar uma área designada pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas.
Actividade no laboratório
Regresso ao Porto. Manuel Frada acabou de entrar na universidade. E, ao contrário da maioria do seu grupo, não se assustou com o estrondo. Estava atento a olhar pela janela do laboratório de estruturas da Faculdade de Engenharia quando viu uma parede colapsar.
Lá dentro, uma equipa de investigadores estava a estudar o comportamento de uma parede de alvenaria em caso de sismo. “Claramente, a solução que aqui estava [a ser testada] ainda não era a melhor”, ironiza Mário Jorge Pimentel, o professor que orientou a visita dos 12 novos alunos de Engenharia Civil ao Laboratório de Estruturas.
A visita insere-se no programa de recepção Orienta-te, lançado no ano passado pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), destinado a mostrar aos estudantes do 1.º ano as potencialidades da faculdade onde acabaram de entrar. “É também uma forma de integrarmos os alunos”, comenta Margarida Bastos, professora que acompanha as visitas aos laboratórios.
O Orienta-te integra, mas não tira os alunos da praxe. Manuel Fraga já foi à praxe na primeira semana e “gostava de ir mais vezes”. “Já que cá estou, gostava de experimentar.” Ao longo da última semana, todos os alunos da FEUP tiveram uma formação intensiva na disiciplina Projecto FEUP que lhes ocupa grande parte do tempo. A praxe aconteceu nos poucos intervalos.
“Chegamos sempre a tempo às coisas”, garante Inês Silva, recém-entrada em Engenharia Civil. Sempre achou a praxe “engraçada” e uma “boa forma de integrar os alunos mais novos”.