"Se Merkel não criar uma Europa dos cidadãos, a UE não tem futuro"

O quarto mandato de Angela Merkel vai ser determinante para o futuro da União Europeia, diz Ulrike Guérot. Deixar-se-á arrastar para uma espiral alimentada por um sentimento de proteccionismo ou irá dar um passo decisivo, com o Presidente francês, para uma melhor Europa?

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Fundadora do think tank European Democracy Lab, que pretende repensar a ideia da integração europeia, e autora do livro Porque tem a Europa de se tornar uma república (não traduzido em português), a alemã Ulrike Guérot defende que é preciso acompanhar a moeda única com políticas fiscais e sociais iguais em toda a Europa. Vê sinais de interesse dos cidadãos, mas menos dos políticos.

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Fundadora do think tank European Democracy Lab, que pretende repensar a ideia da integração europeia, e autora do livro Porque tem a Europa de se tornar uma república (não traduzido em português), a alemã Ulrike Guérot defende que é preciso acompanhar a moeda única com políticas fiscais e sociais iguais em toda a Europa. Vê sinais de interesse dos cidadãos, mas menos dos políticos.

A Europa não foi um tema presente na campanha eleitoral  na Alemanha — onde domingo há  legislativas — apesar de haver óbvias questões a discutir. Porquê?

Será que não se falou porque é um tema realmente complexo? Ou foi porque não há grande visão? Ou porque os políticos como a chanceler, Angela Merkel, não quiseram? Porque há coisas importantes a caminho. Ouvimos os discursos de Jean-Claude Juncker [presidente da Comissão Europeia] e de Emmanuel Macron [Presidente francês], e agora todos olham para a Alemanha — mas a Alemanha não está a dar sinais.

Mas Merkel respondeu a algumas propostas de Macron.

Sim, mas não como algo de grande importância. Claro que há gente em Berlim a preparar dossiers de temas franco-alemães, e as propostas de Macron não são novas, são coisas que estão em cima da mesa há muito tempo. Faz-me lembrar o que acontece na nossa vida: estamos sempre a ter os mesmos problemas, porque não resolvemos a sua causa.

Às vezes os problemas são resolvidos depois de uma crise. É preciso isso?

Sim, mas a questão é: crise de quem? Porque os italianos, gregos, espanhóis, franceses, portugueses, estiveram em crise. Mas os alemães não. E a discrepância entre a autopercepção da Alemanha e a que vem do exterior é grande. Pode dar-se crédito aos alemães por pensarem que fizeram tudo certo. Poupámos, fizemos as reformas sociais, mudámos o mercado de trabalho e tivemos sucesso, por isso, os outros devem fazê-lo também. Mas não resulta para todos, porque nem todos são iguais à Alemanha e este caminho não é aplicável a todos.

A crise do euro deixou de ser um tema?

Infelizmente, para os alemães já não é, acabou. Nunca estivemos em crise por causa do euro. Depois vieram os refugiados e, agora, a primeira das crises, a do euro, já nem existe. O que ocupa o debate político são os refugiados.

A reacção à acção de Merkel na crise dos refugiados irá mudar o rumo do quarto mandato?

Penso que sim. Veremos isso já no acordo de coligação, em que pode haver uma discussão sobre um limite anual de entrada de refugiados, o que poderá excluir uma coligação da CDU, Liberais ou Verdes. Mas esta pode ser uma hipótese, já que a coligação CDU-Liberais pode não ter maioria, assim como pode haver uma nova grande coligação (CDU e o SPD). Não gosto de grandes coligações, são más para a democracia, destroem a oposição.

A hipótese CDU-FDP (Partido Liberal Democrata) seria o pior para Europa — [o líder] Christian Lindner apela à ideia: “Eu, alemão, estou a pagar por estes preguiçosos.” Para mim este foi o ponto mais baixo da campanha. Sempre houve sentido de Estado, um debate sobre se queríamos uma Alemanha europeia ou uma Europa alemã... Agora parece que estamos a discutir preços, e não valores. Mas vejo algumas mudanças.

Quais?

Vejo começar a aparecer um argumento sobre a importância do cidadão europeu. Está a aparecer ligado ao “Brexit”, porque queremos dar aos britânicos a viver no continente uma cidadania europeia personalizada, quando os britânicos saírem da UE. Estamos a perceber que os cidadãos são soberanos. E isso vai além de linhas de pertença étnica ou nacional. Podíamos concordar em ser cidadãos europeus, e isso quereria dizer que somos iguais perante a lei. O que quer dizer igualdade no voto, igualdade fiscal, igualdade social, ou seja, aquilo de que precisamos para gerir a moeda única. Seria completar a união monetária. Podíamos ter isto se disséssemos: “Como cidadãos queremos ter direitos iguais e não queremos ser postos uns contra os outros.”

Mas a tendência não é justamente a contrária?

Penso que muitos cidadãos percebem isto, que não deve haver uma Europa com cidadãos de primeira e de segunda. Já os políticos, é uma questão diferente.

Talvez os políticos temam tanto os cidadãos que criticam a Europa actual.

É preciso cultivar o nosso jardim, como disse Voltaire. Se não se explicar por que se precisa da Europa, perde-se a discussão, e foi isso que aconteceu. Posso dizer em que momento isso aconteceu na Alemanha: foi em 2006, quando realizámos o campeonato europeu de futebol e, de um dia para o outro, havia bandeiras e celebrava-se sermos alemães.Mas no patriotismo alemão não temos um elemento de abertura ao mundo. O momento nacional, que não foi mal-intencionado, deixou os outros países a olhar para a Alemanha e a pensar: “O que vai fazer a Alemanha?” Na campanha das últimas eleições, perguntavam-me: “O que vai fazer o seu país?” E eu pensava que nem sei o que é o meu país. Porque nasci na República Federal, onde a relação franco-alemã era essencial, onde éramos os defensores dos pequenos países, e apoiantes das instituições da União Europeia. Mas agora vivo na Alemanha, em que o eixo franco-alemão está partido por causa do domínio alemão, em que estamos a impor coisas aos pequenos países sem querermos saber o que eles dizem, e o presidente da Comissão Europeia está, no melhor dos casos, a moderar o que Merkel faz, e não queremos saber do Parlamento Europeu.

Mas há estabilidade.

Há um lado positivo: o vácuo de liderança que Merkel finalmente preencheu, o que a tornou a última líder do mundo livre, que fala com [o Presidente russo] Vladimir Putin, e que tem um efeito estabilizador da União. Mas e quando não estiver lá Merkel, o que é então a Alemanha? A Merkel é a Alemanha? Temos outros líderes no país? Penso que temos ainda de distinguir várias lideranças da Alemanha na Europa. Há a Alemanha que lidera a política externa da UE, depois de ter sido criticada por não o fazer. Mas na questão da zona euro tivemos a mesma crítica, e a essa crítica nunca demos ouvidos. Por isso: quando falamos de liderança europeia da Alemanha, queremos dizer o quê? A liderança boa das relações externas? Ou a da crise do euro?

Este será o último mandato de Merkel...

... felizmente. Quer dizer, não quero ser mal interpretada. Nunca votei nela, mas presto-lhe homenagem — é uma pessoa que trabalha imenso, com um grande sentido de Estado. Mas penso que por princípio devia haver limite de mandatos. Oito anos chegam. A ideia de pensar num quinto mandato de Merkel...

... o que queria perguntar era: como este mandato deverá ser o último, que marca poderá Merkel querer deixar na História?

Lembro-me que em 2013 se dizia que ela apenas faria dois anos e que iria para as Nações Unidas. Ela devia sair antes de acontecer o que aconteceu com [Helmut] Kohl, que é deixar chegar o momento em que todos só querem que ele se vá embora. Vai haver pessoas a apunhalá-la pelas costas e vai perder-se a ideia de tudo o que fez de bom pelo país.

Ela tem de deixar algo para a História. Há algumas hipóteses de ser arrastada numa espiral descendente — a Europa está em mau estado e estabilizar a Alemanha indo contra a Europa, ou seja, indo no sentido  de “nós contra os outros”, não irá resultar. Nunca resultou e não vai resultar agora. Além de que seria mau para Merkel, que ficaria nos livros de História como alguém que enterrou a Europa.

Mas?

Mas ela não quer isso. Porque há [Konrad] Adenauer, há Kohl, e há uma tradição que ela não quer perder. E isso dá-me a última esperança de que dê uma reviravolta, como já deu em relação à energia [fim do nuclear] e ao casamento para todos [também entre pessoas do mesmo sexo]. Dá-me esperança que um dia acorde e diga: “OK, vou fazer isto, porque sou a única que o pode fazer.” E, quando mudar, todos mudarão com ela. Macron está [com a ideia da Europa dos cidadãos], assim como a Comissão e Juncker. Pode ser um marco, como foi o entendimento Kohl-Mitterrand-Delors na união monetária em 1992. Merkel-Macron-Juncker poderiam ter “o momento” da democracia europeia.

Na questão do nuclear e do casamento gay havia uma aceitação generalizada da sociedade, e na questão europeia pode não haver?

Em ambas as questões o principal problema foi mais o partido dela e menos a sociedade. Mas eu argumentaria que se Merkel for inteligente verá que também há apoio da sociedade. Tenho estado a viajar pela Alemanha [apresentando o livro] e vejo um público informado e interessado [nas questões europeias]. O que não vejo é uma articulação entre o pensamento da maioria e os que gritam mais alto, e ouvimos mais os que gritam, e estes estão a liderar o debate.

Não tenho dados empíricos sobre o que pensam as pessoas. Mas estas viagens pela Alemanha — e o sucesso do livro — deram-me a sensação de que muitos alemães  partilham o que eu penso e ficaram agradecidos por alguém o dizer. 

Por isso, e para concluir: será Merkel a líder que vai criar a  Europa dos cidadãos? Pode ser ela, tem de ser ela. Se alguém pode jogar essa carta é ela, e se há um momento é agora. Se não o fizer nos próximos dois anos, e agora que existe Macron, não vejo grande futuro para a União Europeia.