Omar “não se sente refugiado”, Khaled “não tem nenhum amigo”
As histórias de refugiados chegados à Alemanha incluem sucessos como o do grupo que fez a aplicação Bureaucrazy, para ajudar com a burocracia alemã. Mas o desafio da integração é grande.
Omar Alshafai chega com ar atarefado ao sítio onde trabalha, nas horas vagas, na sua aplicação, um espaço com Internet e café e ambiente familiar. Esta podia ser uma entrevista sobre uma startup em qualquer cidade com startups. Ele está ansioso, vai ter uma reunião importante; não tem muito tempo, mas não quer parecer convencido; nota-se ainda que está cansado.
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Omar Alshafai chega com ar atarefado ao sítio onde trabalha, nas horas vagas, na sua aplicação, um espaço com Internet e café e ambiente familiar. Esta podia ser uma entrevista sobre uma startup em qualquer cidade com startups. Ele está ansioso, vai ter uma reunião importante; não tem muito tempo, mas não quer parecer convencido; nota-se ainda que está cansado.
A aplicação que Omar está a desenvolver com outros três sírios pretende ajudar qualquer recém-chegado à Alemanha com o labirinto da burocracia alemã: chama-se Bureaucrazy. Tiveram a ideia por causa das dificuldades que encontraram enquanto refugiados, mas depressa perceberam que o problema era generalizado para qualquer pessoa que se mude para o país: ir de um gabinete a outro, esperar por papéis de organismos diferentes, e finalmente, assinar algo que não percebiam.
Mal chegou a Berlim, com milhares de outros refugiados em 2015, Omar resolveu fazer um curso gratuito de programação oferecido por uma escola, a ReDI – antes de ser aceite o pedido de asilo não é possível começar os cursos de integração dados pelo estado, que incluem língua e educação cívica (e que são depois obrigatórios). Mas é possível fazer cursos em organizações não-governamentais, e foi isso que fez.
Foi lá que conheceu o resto da equipa que desenvolve a aplicação, que irá ajudar a abrir uma conta bancária, alugar um apartamento, concorrer a um curso universitário, ou registar-se no centro de emprego. Pode parecer fácil, mas qualquer grupo no Facebook de estrangeiros em Berlim mostra que não é, nem para cidadãos da União Europeia. “Sabemos exactamente qual é o problema, porque sofremos com ele. E sabemos como facilitar”, diz Omar.
A tradução é uma parte importante da aplicação – mas como, ao tentarem ter ajuda de alemães, viram que por vezes nem estes percebiam, vão ter uma tradução para “alemão simples”. Haverá uma função de preenchimento automático, para não ter de se repetir eternamente os mesmos dados.
Integração
Omar é um caso de sucesso: está na sua segunda semana num novo emprego no prestigiado centro DIW, de aconselhamento económico do Governo, depois de ter trabalhado na Mercedes. É no tempo livre, noites e fins-de-semana, que trabalha na app.
Mas não gosta muito de ser apresentado como um exemplo. “Não sou assim tão importante”, diz. Alguém comentou num artigo que apesar de não terem formação em programação anterior, ele e os amigos eram utilizadores radicais da tecnologia, que usaram durante o caminho da Síria para a Europa. Omar quase rebola os olhos. “Usávamos grupos do FB para encontrar os traficantes para nos levar, foi só isso que fizemos”, diz, desvalorizando.
De resto, não podia estar mais contente com a sua vida em Berlim. “Não me sinto um refugiado. É espantoso. Trabalho com alemães, os meus vizinhos são alemães, ninguém se importa”, diz.
Há uma altura na conversa em que tem um momento de verdadeiro entusiasmo. Quando está a explicar que apresentou a ideia na Startup Summit em Berlim em Junho, e o feedback foi positivo, mesmo de países como a Roménia e Espanha. “Pensamos em expandir mais tarde, porque há o mesmo problema em tantos outros países.” E Portugal, não havia ninguém de Portugal? “Não, porquê?”, quer logo saber Omar, “também há muita burocracia lá?” A ideia é expandir a app para onde seja preciso e Omar já está a ver mais um público-alvo.
Quando mais de 800 mil refugados chegaram à Alemanha, no final do Verão de 2015, o país mobilizou-se. Foram criados abrigos em ginásios de escolas, salas camarárias, os refugiados recebidos nas estações de caminho-de-ferro.
Mas se a chanceler, Angela Merkel, garantiu “nós conseguimos” (“wir schaffen das”), depressa se começou a perceber que tantas pessoas eram um desafio em termos de organização. A burocracia não estava a dar resposta, os voluntários começavam a cansar-se. Os refugiados tornaram-se uma questão política, explorada pela extrema-direita. A recusa de outros países da UE em receber refugiados escandalizou muitos alemães.
A popularidade de Merkel começou a descer, e a sua possibilidade de conseguir um quarto mandato foi mesmo posta em causa. Mas rapidamente o fluxo de pessoas diminuiu, também graças ao acordo com a Turquia. E a chanceler recuperou.
Nestes dois anos, muitos refugiados foram conseguindo passo a passo avançar no seu caminho no país, desde encontrar uma formação, um emprego, ou um apartamento. A Alemanha tem muitas vagas de emprego por preencher, estima-se que sejam mais de um milhão. Uma grande parte é na área de tecnologia, e de profissões altamente especializadas, e também há trabalho em áreas que podem ser feitas depois de formações menos longas, especialmente na área de cuidados a séniores, onde há muita procura num país muito envelhecido.
O problema da habitação
Mas nas grandes cidades, onde a falta de habitação é generalizada, encontrar um apartamento pode ser o maior problema, e muitos refugiados continuam a viver em centros de acolhimento.
Num destes centros de Berlim, uma mulher baixa, com um lenço branco com estrelas cor-de-rosa, sai do edifício.
Aproxima-se, curiosa, fecha os olhos em concentração vincando mais as rugas, e tenta comunicar. Mas só fala farsi. Mostrando-lhe o telefone com tradução automática para a sua língua, percebe-se que não sabe ler, nem escrever. Madrassa, diz, fazendo um gesto de negação com a cabeça. Não foi à escola.
Percebe a palavra “família”, e faz um gesto de três, e de idades em escada. Eles estão agora na “madrassa”, na escola. A maioria dos refugiados menores está a receber algum tipo de formação.
Também dá para perceber que está melhor aqui. “Cabul”, diz, abanando a cabeça, e imitando tiros de espingarda com as mãos. Mas a dada altura desiste, não é possível comunicar mais. Sai para dar um passeio. Na rua para onde vai estão pendurados vários cartazes da Alternativa para a Alemanha, o partido anti-refugiados, anti-imigração, xenófobo.
Num placard num centro de encontro entre alemães e refugiados há vários cartões com mensagens de procura e oferta: bicicletas, computador, e outros. “Procuro amigos”, diz o cartão assinado por Khaled. “Estou na Alemanha há dois anos e ainda não tenho nenhum.”