Quem canta seus males espanta
Uma história deste século: a luta dos operários contra o fecho da sua fábrica. A Fábrica de Nada é filme perplexo: interroga-se sobre o trabalho, o capitalismo, o futuro da actividade humana. Mas é libertador. Há gente a falar, a dançar, a cantar.
Um homem e uma mulher estão a fazer amor, quando são interrompido por um telemóvel. Depois de atender a chamada, o homem veste-se e sai, consumido pela angústia do dia seguinte, em socorro do trabalho ameaçado. Desperta assim, numa noite fria de Novembro, A Fábrica do Nada, um dos acontecimentos cinematográficos deste ano. Depois da estreia mundial em Cannes, onde foi distinguido com o prémio da Crítica Internacional, o filme de Pedro Pinho chega às salas portuguesas, mostrando a sua perplexidade diante de uma história deste século: a luta dos operários contra o fecho da sua fábrica. Um filme perplexo, sim – as interrogações sobre o trabalho, o capitalismo, o futuro da actividade humana, persistem ao longo das suas três horas – mas ao mesmo tempo libertador, pois no interior desta fábrica há gente libertada pela ficção, a falar, a dançar e a cantar. Há gente nesta fábrica.
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Um homem e uma mulher estão a fazer amor, quando são interrompido por um telemóvel. Depois de atender a chamada, o homem veste-se e sai, consumido pela angústia do dia seguinte, em socorro do trabalho ameaçado. Desperta assim, numa noite fria de Novembro, A Fábrica do Nada, um dos acontecimentos cinematográficos deste ano. Depois da estreia mundial em Cannes, onde foi distinguido com o prémio da Crítica Internacional, o filme de Pedro Pinho chega às salas portuguesas, mostrando a sua perplexidade diante de uma história deste século: a luta dos operários contra o fecho da sua fábrica. Um filme perplexo, sim – as interrogações sobre o trabalho, o capitalismo, o futuro da actividade humana, persistem ao longo das suas três horas – mas ao mesmo tempo libertador, pois no interior desta fábrica há gente libertada pela ficção, a falar, a dançar e a cantar. Há gente nesta fábrica.
Obra de trânsitos entre a ficção e o documental, o debate teórico e a textura de relações humanas, tem um passado que a determina e enriquece, como revelaram os seus autores ao Ípsilon. A história começou em 2010, com uma proposta de Jorge Silva Melo para adaptar ao cinema a peça teatral da dramaturga holandesa Judith Herzbel, mas enfrentou um breve impasse com o afastamento do encenador (Telmo Churro e João Rosas também abandonara o projecto depois de uma colaboração inicial). A vida do filme tomaria então outro caminho. Sem abandonar elementos do texto original, deixou-se ocupar por um colectivo, o da produtora Terratreme, antes de encontrar um território, a Póvoa de Santa Iria.
João Matos, um dos autores do filme, recorda o processo. “Algumas características do trabalho levaram-nos e envolver o núcleo de seis pessoas da produtora. Nessa altura, decidiu-se que o Pedro, a Luísa Homem, o Tiago Hespanha e a Leonor Noivo ficariam responsáveis pelo argumento. E eu e a Susana Nobre ficaríamos a trabalhar na produção. Esta ideia de um núcleo esteve sempre presente na Terratreme, mas o projecto não surge por uma razão ideológica ou identitária. É uma consequência de um colectivo de seis pessoas que trabalham juntas. Resultou dessas circunstâncias”. A equipa começou a trabalhar em 2014. Em Abril desse ano os quatros argumentistas estabeleceram-se num apartamento da cidade do concelho de Vila Franca de Xira. O Barreiro chegou a ser uma hipótese como lugar das filmagens, mas uma coincidência levaria a produção para o oriente, sem atravessar o Tejo. “Conhecia bem a realidade daquela zona”, revela Susana Nobre. “Tinha trabalhado cinco anos como técnica no programa Novas Oportunidade, em Alverca e realizara ali Vida Activa (2015) e Provas, Exorcismos (2015). Penso que esses filmes reverberaram um pouco no Pedro Pinho. Disse que gostava muito de fazer Fábrica do Nada, ali e assim foi”.
Ir ao encontro das pessoas
O realizador recorda uma viagem de comboio decisiva para a escolha: “Já tinha feito aquele percurso, mas no meio da crise económica foi um momento determinante. Senti que assistíamos a um descalabro, apercebi-me de que estava tudo a colapsar. Restavam 11 fábricas numa região que tivera 56 ou 57. Estávamos no epicentro do que se estava a passar”. Nas semanas seguintes, Susana Nobre colocou a equipa em contacto com a junta de freguesia de Alverca e amigos em Alhandra. Visitaram-se fábricas, espalharam-se a cartazes a anunciar castings, fizeram-se entrevistas. “Fomos mergulhando de forma livre dentro do território”, acrescenta Leonor Noivo. “Acho que essa liberdade foi uma maneira natural de entrar na história”.
A escrita do texto, a selecção dos actores e dos lugares foi nascendo à medida que esse mergulho se dava. Da peça de Judith Herzberg, os argumentistas conservaram a ideia de uma fábrica que produzia nada e o musical, o resto deixaram às circunstâncias e às descobertas que nova realidade oferecia. Tiago Hespanha ainda hoje se interroga sobre o sucesso do método: “Estivemos literalmente a escrever juntos, a oito mãos, a partir do zero. Foi para mim muito surpreendente ver isso a resultar, a conseguirmos escrever cenas em conjunto e a juntá-las”. Esse era um dos desafios. Fazer de várias assinaturas um filme. Uma diversidade de cenas e registos, a diferença de ritmos atravessam Fabrica de Nada sem o desequilibrarem. Há uma estranha harmonia no seu desenrolar. “Às vezes, íamos fazendo em conjunto, outras vezes, até, dividíamos o trabalho”, explica Leonor Noivo. “Cada um ia para o seu canto e voltava no fim do dia para discutir. Para ver como as coisas resultavam. E funcionava. Daí as diferentes tonalidades do filme”.
A escrita nasceu de histórias de Póvoa de Santa Iria. Por isso, Fábrica de Nada também é um retrato da sua paisagem, com os seus habitantes (Hermínio, Zé Pedro, entre outros não actores), à beira Tejo, longe de Lisboa. Não se fecha na teoria ou no ensaio, banha-se na realidade mundana das relações humanas, na sua linguagem mais prosaica. “O processo de escrita foi muito alimentado pelo contacto com as pessoas que acabaram por integrar o grupo de actores, por encontros fortuitos na rua”, revela Tiago Hespanha. “Um dia fomos almoçar e encontrámos uma pessoa que nos levou a passear de barco no rio. De repetente abriu-se ali um mundo e dissemos: 'vamos convocar isto para dentro do filme, escrever uma cena que integre isto'”.
Na cidade e à volta da cidade, o grupo foi-se confrontando com dramatismo e a intensidade das histórias, como as que Pedro Pinho não esquece: “Fábricas que fechavam, administrações de empresas que desapareciam, a tensão e os conflitos entre os trabalhadores, a divisão entre eles. Os processos de negociação, as estratégias dos departamentos de recursos humanos para os dividir. Percebemos logo que isso tinha que ser matéria do filme”. A intenção de trabalhar com não actores estava definida desde o início, a fim de permitir às pessoas que trouxessem as suas maneira de viver, de estar, de falar, as suas histórias. “Nunca demos os argumentos aos actores, nunca houve falas para decorar, porque sabíamos que se o fizéssemos íamos estar a matar ou reduzir as possibilidades de os diálogos irem além do que tínhamos escrito”, diz Tiago Hespanha. “Procurámos sempre ir ao encontro das pessoas. Uma das maiores descobertas foram as pessoas. E isso estava no método de trabalho, na rodagem, no modo como se lançavam as bases de uma cena e ela era filmada. Muitas vezes, fomos à procura de um rosto que estava na periferia. Lembro-me de um amigo, actor profissional no filme, dizer que o método tinha algo de selvagem. Que era suposto ele estar no centro de uma cena e de repente a equipa fugia para filmar algo ao lado, porque aí estava a acontecer uma coisa mais interessante”.
O que estamos aqui a fazer?
As pessoas de A Fábrica do Nada não são apenas os habitantes do concelho de Vila Franca Xira, são também os actores profissionais, em particular José Vargas Smith e Carla Galvão, que compõem o par amoroso, o documentarista Danièle Incalcaterra, os argumentistas, os participantes no debate teórico durante um jantar (entre os quais, o filósofo e ensaísta Anselm Jappe e a médica Isabel do Carmo) que a meio do filme interrompe a história. É com esta galeria que o filme vai negociando a relação do documental com a ficção, deslizando de um registo para o outro, sem cair. “Queríamos casar o nosso universo de vida com aquilo que estávamos a filmar. Houve a tentativa de juntar estes dois mundos, de ver onde podiam coincidir”, elabora Pedro Pinho. “Pensámos no protagonista como um operário da nossa idade, um músico numa banda punk. Alguém que tivesse uma vivência próxima da nossa. Queríamos que essa coincidência fosse possível. O José Smith é um amigo nosso. Começámos a construir aquela personagem e às tantas apercebemo-nos que a mãe dele trabalhara na fábrica da Covina, em Santa Iria da Azóia [perto da Póvoa de Santa Iria, mas já no Concelho de Loures]. Ele conhece bem aquela realidade. E há muitos casos de jovens operários que produzem música punk. A possibilidade de confluência entre esses dois universos interessava-nos”.
Dessa confluência, o filme deixa no ar questões, dúvidas, percebe-se uma necessidade de auto-crítica. Veja-se a cena em que José Vargas interpela Danièle Incalcaterra, o realizador que documenta a ocupação da fábrica pelo protagonista e os outros operários. Desesperado, o primeiro diz que aquela história não é um filme para os amigos do realizador verem em Paris. “Não sei como surgiu essa frase”, confessa Tiago Hespanha. “A introdução do realizador foi motivo de várias discussões entre nós, de múltiplas conversas. O Pedro desde o início deixou claro que não queria uma equipa de filmagem a ser filmada. E tivemos que encontrar outra forma de inserir a personagem. Por outro lado, as nossas ideias sobre o cinema, o mundo do trabalho, as fábricas foram sendo sucessivamente postas em causa, reformuladas pelo contacto directo com as pessoas que tinham vivido aqueles processos. O que estávamos aqui a fazer? O que podemos dizer sobre isto, quando à nossa frente temos estas histórias de vida e experiencias? Essas perguntas estiveram sempre em cima da mesa e acho que essa cena contém ecos disso. Nós a debatermo-nos com o cinema, a representação e repente levamos uma estalada”.
O real não se intromete apenas numa cena. Outra, bem mais breve, acolhe-o, na manhã seguinte à noite em que José Vargas chega à fábrica para ajudar os colegas, depois de deixar a intimidade da casa: o surto da legionella, anunciada pela rádio. “Aconteceu quando estávamos filmar. Toda a gente da equipa conhecia alguém que tinha contraído legionella. Receávamos que um dos actores ficasse doente. O Hermínio passou o filme todo a tossir”, conta Pedro Pinho. “Apesar de haver uma homenagem às pessoas que personificaram a realidade não podíamos sacralizar aquele passado industrial. Aquela é uma história de dominação e violência bruta sobre um conjunto alargadíssimo de pessoas. Um dos momentos de que gosto muito no filme é aquele em que o José está à espera do autocarro e em contraplano tens um parede de prédios com fábricas e fumos. Como se pode pensar que alguém vive ali? Como se pode planear uma cidade e pôr pessoas a viver assim? Com vista para a chaminé de uma fábrica?”.
O peso de um desespero surdo vai-se abatendo sobre as personagens à medida que o filme progride, atingindo em particular o casal. “As histórias que ouvíamos davam-nos conta do impacto que esta situação tinha na vida das pessoas. O Hermínio [um dos não actores] foi despedido no dia 31 de Outubro e começamos a filmar no dia 1 de Novembro. A sua fábrica ficava a 50 metros daquela onde rodámos o filme. Ele fez uma entrevista para a promoção do filme onde fala de colegas que tiveram ataques cardíacos ou se suicidaram. Não transformámos o filme num melodrama, mas as pessoas falavam-nos das suas vidas”. João Matos propõe uma leitura política da crise humana que em 2014 se instalara no país: “O filme também lida com a falência do discurso ideológico, político e intelectual da esquerda sobre o trabalho, e com o cinema de esquerda que reflecte sobre esse discurso. Isso também foi o mote para algumas das alterações no projecto. Temos a noção de que hoje os vários discursos produzidos para a análise da realidade são constantemente derrotados pelas máquinas, da finança, do capitalismo”.
O filme debate-se com esse pano de fundo teórico, procura representá-lo, mas Pedro Pinho rejeita a ideia de que A Fábrica do Nada propõe uma tese. “O objectivo foi levantar perguntas e problemas, interpretar criticamente ferramentas como a autogestão, com que os trabalhadores se propõem conduzir a fábrica. Apesar de ter uma reflexão política e filosófica, e isso é explícito, quisemos sujar as mãos, construir um conjunto de perplexidades, mais do que mostrar uma tese”. É esta liberdade (a do cinema e da arte) que abre a ficção em A Fábrica do Nada, permitindo que o filme se vá transfigurando, sem recear a aproximação a outros géneros ou tipos de cinema. “Apesar de todas as camadas de discurso que tem, lembra a ideia um filme de aventuras”, considera Susana Nobre. “Como espectadores estamos sempre a ser colocados em situações imprevistas. Como é que estas pessoas vão resolver aquela situação? De cena para cena, há momentos sempre surpreendentes no modo como o filme vai progredindo. E acho muita graça ao facto de começar com essa cena clássica do cinema que é a do casal a fazer amor e que é interrompido por um telemóvel. Obviamente, é uma cena que já vimos mil vezes. O filme não foge desses clichés, apropria-se deles, para os levar para outro lado”.
A alegria contra a falência do mundo
A equipa de produtores encontrou a fábrica do filme por um curioso e feliz acaso. Depois de várias visitas sem sucesso – “quando mostrávamos o argumento, com as referências a uma ocupação e à auto-gestão, a resposta era logo negativa”, conta Pedro Pinho – deram com um edifício que lhes chamou a atenção. “Marcámos uma entrevista com o administrador e à medida que íamos abordando, com pezinhos de lã, a história, ele foi arregalando os olhos. Levou-nos à cantina onde está um mural do Lenine e disse que a história que eu lhe estava a contar era a história desta fábrica. A partir daí abriram-se as portas”. A fábrica em causa trata-se da Fortleva que depois do 25 de Abril entrou em autogestão e cujos empregados se tornaram accionistas nos anos 90 do século passado, antes de encerrar por faltas de encomendas, em 2006. A descoberta desta coincidência durante o trabalho no terreno não é estranha à sensibilidade da Terratreme à relação com o real, ao modo como os argumentistas e produtores conceberam, para este filme, o trabalho em conjunto.
“Já fiz um filme com a Luísa, a Luísa já fez um filme com o Pedro. Já colaborámos na escrita e montagem de outros filmes”, conta Tiago Hespanha, “mas este não podia ter saído só de uma forma de sentir as coisas e isso é muito bom. E muito bonito ver o filme e perceber isso. É fruto daquele momento e daquelas pessoas naquele momento. Não sei se é repetível, pelo menos da mesma forma não há-de ser”. As colaborações e as afinidades entre os realizadores não esgotam a Terratreme (onde cabem vários processo e formas de cinema) mas por detrás de A Fabrica de Nada há outra obras cinema português: “Tínhamos feito outros filmes que abordavam temas semelhantes. A Susana Nobre fez aqueles filmes de que falámos, fiz o Revolução Industrial (2014) com Frederico Lobo no vale do Rio Ave. A Luísa fez um filme em Cabo Verde com o Pedro [As Cidades e as Trocas, de 2014] que também documenta a um processo de transformação brutal da vida. Há uma série de questões na origem do filme que já estavam a ser trabalhados por nós noutros filmes” Luísa Homem concorda e complementa: “Havia uma constelação de filmes já realizados, de que certa forma A Fabrica do Nada é o culminar. Foi como se tivessem preparado o terreno para este filme”.
A permeabilidade dos realizadores ao real e à reflexão sobre o quotidiano não constituem um programa, mas são aspectos que os cineastas partilham com gosto. Talvez seja esse modo de ver o cinema e a vida que anima A Fabrica de Nada com uma energia que o torna divertido, catártico, desopilante, como se apesar da falência e do absurdo do mundo, uma certa alegria pudesse ser devolvida aos intérpretes. Eles vociferam, eles brincam, eles cantam, eles dançam, eles humanizam aquela fábrica de nada. Diz Tiago Hespanha: “Tudo isso acontece porque há uma proposta ficcional, estão a fazer ficção, são actores. Nunca lhes passou pela cabeça dançar, nem nos passou pela cabeça fazer uma coreografia, e de repente isso também é libertador. Estou ali jogar um jogo, a fazer outra coisa, que é alimentado pela minha experiencia, pela minha vida, e que de repente supero, fazendo outra coisa”.