Sexo e romance em camadas
A artista paulista Leda Catunda está de regresso ao Porto com uma exposição individual pensada para o espaço da KubikGalley. São dez obras organizadas em camadas, denunciando a estratificação do mundo de hoje, onde é difícil distinguir o real daquilo que é veiculado pelos media.
Quase a assinalar 35 anos de carreira – o que acontecerá no próximo ano, com referência à sua estreia na mostra colectiva Pintura como meio, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1983 –, a artista paulista Leda Catunda (n. 1961) ofereceu-se a si própria uma residência fora de casa, “um tempo para ficar um pouco sozinha”, distante do seu circuito habitual, “para poder repensar o [seu] trabalho”. Cortesia do galerista João Azinheiro e da sua KubikGallery, no Porto, que desde o passado fim-de-semana, e até 17 de Novembro, está a mostrar o mais recente trabalho da pintora, Sexo e Romance.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quase a assinalar 35 anos de carreira – o que acontecerá no próximo ano, com referência à sua estreia na mostra colectiva Pintura como meio, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1983 –, a artista paulista Leda Catunda (n. 1961) ofereceu-se a si própria uma residência fora de casa, “um tempo para ficar um pouco sozinha”, distante do seu circuito habitual, “para poder repensar o [seu] trabalho”. Cortesia do galerista João Azinheiro e da sua KubikGallery, no Porto, que desde o passado fim-de-semana, e até 17 de Novembro, está a mostrar o mais recente trabalho da pintora, Sexo e Romance.
Quem chega à pequena galeria na zona histórica de Massarelos, junto ao rio Douro, pode entrever na “montra” uma instalação com uma dezena de obras, desenhos sobre tecido marcados por cores aparentemente felizes – rosa, azul, verde, amarelo… –, mas que numa observação mais próxima e atenta nos mostram uma realidade bem mais desbotada.
No centro da exposição está uma peça de grandes dimensões (2x3m), organizada em camadas, e que quase chega ao chão. Apetece mexer, entreabri-la e ir à procura da verdade escondida no verso dessas imagens de novela: casais em encontros apaixonados na cama, na piscina, no mar, com a natureza em fundo e o olhar cúmplice e doméstico dos gatos…
“Esta é a exposição que as pessoas fazem de si próprias nas redes sociais”, explica Leda Catunda na visita em que guiou o Ípsilon por entre os seus trabalhos. “Fazem-no como se houvesse uma felicidade igual à que a gente vê nos filmes: o actor é lindo, a actriz é linda e o amor é muito intenso, quando, na verdade, nas nossas vidas nós temos é de acordar e ir trabalhar”, nota.
A artista sabe que “a vida é muito mais complexa do que as fotos do Instagram; tem montes de camadas, e tem uma dor na existência que é essa questão básica do sentido da vida”. “Com todas estas tecnologias novas, a gente não vive mais numa camada só, mas num mundo folheado, como um mil-folhas”: a rádio, a televisão, o email, o WhatsApp, o Facebook… Daí que Leda apresente Sexo e Romance como um alerta, “uma alegoria, uma metáfora da vida”, retratada na sobreposição dessas camadas. “São espessuras que a gente não consegue, às vezes, nem entender em nós mesmos, quanto mais nos outros”.
Sobre esta estratificação, o curador e crítico Miguel von Hafe Pérez escreve num texto a acompanhar a exposição: as pinturas “discorrem sobre uns tempos que, nas palavras desta artista brasileira, se definem a partir de uma oscilação entre ‘o real e o virtual, entre a ansiedade e a melancolia’”. “Ao construir os seus trabalhos por camadas – acrescenta Pérez –, Leda Catunda introduz esse elemento decisivo para uma recepção perturbadora daquilo que à partida seria uma transposição relativamente inocente e positiva da realidade”.
Perante as imagens convencionais que fazem essas camadas (des)coloridas de Sexo e Romance, encontramo-nos na posição de um “distanciamento desassossegado”, ainda nas palavras do curador, que vê na obra da artista brasileira referências ao modernismo de uma Tarsila do Amaral (1886-1973), a “reacção vernacular à rigidez do concretismo” e ainda ecos “das formas barrocas de um passado ainda tão presente no Brasil”.
Momento de viragem
Leda Catunda assume que o dispositivo técnico e cénico que experimentou em Sexo e Romance configura uma “viragem” na sua carreira. Se a pintura sobre tecido é algo de que se “apropriou” desde o início – “Eu estava me formando na Universidade, e nas aulas de desenho eu me perguntava: ‘Por que é que eu vou desenhar se o mundo já é todo desenhado’”, diz, a justificar a utilização recorrente de véus e tecidos estampados sobre os quais inscreve desenhos novos –, o trabalho que agora realizou durante uma residência de mais de um mês no Porto aponta para um novo caminho.
“Eu vou fazer 35 anos de carreira, e toda a vez que a gente faz um trabalho que as pessoas gostam muito, depois elas sempre querem que a gente faça a mesma coisa. Mas a gente precisa de ser livre e arriscar. Então, eu nem sei o quanto as pessoas vão gostar ou não, mas sim, [Sexo e Romance] é uma tentativa de ir por um outro caminho”, anuncia a artista, avançando o seu projecto de experimentar novas formas e técnicas.
“Esta exposição [no Porto] foi uma oportunidade para eu ficar um pouco sozinha, distante do meu circuito, e poder realmente repensar o trabalho”, acrescenta Leda, mostrando-se “especialmente contente com o resultado” da mostra na Kubik.
“Inicialmente tinha falado com o João [Azinheiro] que o trabalho podia passar pelo chão, experiências que eu pretendo desenvolver daqui p’rá frente”, explica, admitindo que essa aventura pelos caminhos da instalação, quase escultura, poderá já experimentá-la na mostra que está a preparar para um museu brasileiro, mas que não pode identificar por estar ainda em fase de negociação. “Estou a pensar numa escala maior, mais cénica, mas com o mesmo material” agora utilizado na Kukik, avança.
Leda Catunda, que tem ascendência lusa – é Serra por parte do pai, de Chaves, e Gomes por parte da avó Laurentina, de Coimbra, que a ensinou ainda a costurar os tecidos para as suas obras –, tem com Portugal relações artísticas regulares desde que, em 1990, expôs na Gulbenkian, em Lisboa, na mostra colectiva U-ABC, com artistas também do Uruguai, da Argentina e do Chile; e três anos depois fez a sua primeira individual portuguesa no Módulo - Centro Difusor de Arte, no Porto. “Para essa exposição trouxe um trabalho mais experimental, em acrílico sobre tecido – às vezes é mais fácil experimentar na casa dos outros do que no seu próprio país”, realça. E recorda que teve então “uma reacção muito boa, com críticas no jornal muito positivas”.
Estabeleceu desde essa altura amizade com artistas portugueses que se veio mantendo ao longo dos anos, referindo os nomes de Pedro Calapez e Ana Vidigal, Ângela Ferreira e Isaque Pinheiro, além de Vasco Araújo e Julião Sarmento, que trabalha com a galeria que é também a sua, e “é um artista super-respeitado no Brasil”, nota.
Leda mostra-se impressionada com o modo como os artistas portugueses lidaram, e superaram, a crise económica e social que marcou o país nos anos da Troika. “Mas eles encontraram alternativas, e agora tive o prazer de os encontrar todos sorridentes, colhendo os frutos dos investimentos, principalmente de ordem intelectual, que fizeram durante a crise”.
Herdeira da chamada Geração de 80 – que integrou nomes como Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Luiz Zerbini e Sérgio Romagnolo (que foi seu marido), e protagonizou o chamado "regresso à pintura" após o movimento de arte conceptual dos anos da ditadura militar (1964-1985) –, Leda reflecte agora sobre a nova situação de crise que se vive no seu país.
“A minha geração, apresentando-se no início da abertura pós-ditadura militar, quis escancarar a liberdade, e houve então uma possibilidade muito maior de experimentação dos materiais”, recorda a artista, estabelecendo um paralelismo com o movimento europeu da Transvanguarda. Actualmente, e de novo em crise, o Brasil vive “a infelicidade pura”. Se a artista reconhece que “o carácter mais trágico da crise afecta especialmente as classes baixas, que não têm para onde correr”, também os artistas se vêem de novo obrigados “a trabalhar de um modo alternativo, em espaços alternativos e com menos dinheiro, menos infra-estruturas, e são abatidos por isso”. E cita os exemplos dos recentes despedimentos de dezenas de pessoas na Pinacoteca e no Museu de Arte Moderna de São Paulo. “São equipas que demoraram a ser formadas, em educação, em conservação, em restauro, e que agora se perderam de uma hora para a outra”, lamenta.
E, estabelecendo um paralelismo com o móbil da sua exposição Sexo e Romance sobre a invasão dos media na vida de cada um, Leda sintetiza: “Eu não consigo pensar exactamente o sono que eu quero”.