How Can I Help You? – um fotógrafo português nos bastidores dos call centers
José Sarmento Matos quis conhecer o quotidiano invisível dos trabalhadores de call centers da Índia e das Filipinas – o trabalho, que o fotógrafo ainda não dá por encerrado, está agora exposto no Espaço Santa Catarina, em Lisboa.
Ao contrário do que seria expectável, “as condições de trabalho e a remuneração dos operadores de call center nas Filipinas são muito superiores” àquelas que José Sarmento Matos verificou em Portugal. O fotógrafo conhece bem a realidade portuguesa, diz ao PÚBLICO: documentou, em território nacional, mais de 20 centrais de atendimento telefónico antes de dar inicio ao projecto que catapultou a sua carreira, How Can I Help You?, que conheceu publicação no The New York Times, na Newsweek, na Wired e no Süddeutsche Zeitung, e que agora pode ser visto no Espaço Santa Catarina, em Lisboa, até 4 de Outubro.
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Ao contrário do que seria expectável, “as condições de trabalho e a remuneração dos operadores de call center nas Filipinas são muito superiores” àquelas que José Sarmento Matos verificou em Portugal. O fotógrafo conhece bem a realidade portuguesa, diz ao PÚBLICO: documentou, em território nacional, mais de 20 centrais de atendimento telefónico antes de dar inicio ao projecto que catapultou a sua carreira, How Can I Help You?, que conheceu publicação no The New York Times, na Newsweek, na Wired e no Süddeutsche Zeitung, e que agora pode ser visto no Espaço Santa Catarina, em Lisboa, até 4 de Outubro.
Terminado o curso de Jornalismo na Universidade Católica e o estágio em fotojornalismo no PÚBLICO, Sarmento Matos rumou a Londres. Era o ano de 2013, pleno culminar da crise económica em Portugal. “Fui com o intuito de frequentar o mestrado de Fotojornalismo e Fotografia Documental [da London College of Communication]. Também sabia que em Portugal dificilmente iria conseguir realizar o tipo de trabalho que queria ou em volume suficiente para sentir que estava a cumprir os meus objectivos”, explica. Na nova morada, um dos trabalhos que realizou para suportar o custo da frequência do mestrado foi o de operador de call center. Assim seu deu o primeiro contacto com o mundo dos “trabalhadores invisíveis”, e assim se deram também os primeiros cliques na sua direcção. “Era um trabalho aborrecido, não muito bem pago. Mas era flexível em termos de horários e era fácil de fazer.” Não tardou o pedido à direcção da empresa para fotografar dentro das instalações. “Custava-me estar longe da fotografia", diz.
Anos mais tarde, o tema voltou a persegui-lo. Tanto que, entre o início de Fevereiro e o final de Maio de 2016, José se dedicou à descoberta e ao registo da vida do operador de call center no epicentro mundial desse tipo de serviço. “Há 1,2 milhões de operadores de call center nas Filipinas e 1,1 milhões na Índia”, frisa o fotógrafo.” As empresas que contratam os centros de atendimento telefónico visadas, em regime de outsourcing, estão sobretudo sediadas em países anglo-saxónicos, como Estados Unidos, Inglaterra ou Austrália. Mas a deslocalização não é forçosamente sinónimo de exploração, diz: “Existe uma ideia pré-concebida – sustentada por filmes como Quem Quer Ser Bilionário? – de que as condições de trabalho nestes locais são atrozes. Sempre que anunciava o meu destino, as pessoas alertavam-me para o que iria encontrar: locais sobrelotados e sobreaquecidos, pessoas sujeitas a horários intermináveis por salários miseráveis. Não foi isso que encontrei."
Nas Filipinas, diz, "ser operador de call center está na moda, é bem visto": "Os salários rondam os mil dólares [americanos] mensais – é um excelente ordenado, tendo em conta o custo de vida nas Filipinas – e as condições de trabalho são, em quase todos os casos, melhores do que as que encontrei em Portugal. Fotografei dentro de edifícios filipinos que podiam estar no centro de Manhattan: arranha-céus imponentes, novos, com excelentes condições logísticas e tecnológicas. Os funcionários trabalham cinco dias por semana em regime nocturno, das 22h às 7h da manhã”, conta. E não é o baixo custo da mão-de-obra ou a desprotecção da classe trabalhadora que atrai as empresas ocidentais para a contratação destes serviços nas Filipinas, antes o profissionalismo e a especialização que ali se atingiu: “Conheci um jovem grego que arranjou emprego como operador de call center em Manila. Na Grécia, onde o emprego escasseia, muito provavelmente ele não ganharia mil dólares mensais a fazer o mesmo trabalho.”
Na Índia, o caso muda de figura. “Na sua maioria, os operadores são sobrequalificados para o trabalho e realizam-no apenas por falta de alternativa. Existe um grave problema de desemprego na Índia, motivo por que os salários são mais baixos do que nas Filipinas. Mas as condições de trabalho não são, nem de perto nem de longe, aquilo que a nossa imaginação sugere quando se fala em call centers indianos. São locais de trabalho dignos, normais.”
Antes de 2011, a Índia era a rainha oriental do negócio do call center, trono que perdeu para as Filipinas. E sobretudo por causa do sotaque. “Quando um cliente liga para um serviço de apoio, o que pretende é relatar um problema e receber ajuda. Neste processo, o domínio do inglês é fundamental. Os filipinos falam inglês com um sotaque americano perfeito. A cultura filipina é profundamente americanizada, o que se revela vantajoso. Já os indianos são incapazes de falar inglês sem denunciar a sua origem. Quando tentam americanizar o sotaque, tornam-se por vezes mesmo imperceptíveis, o que tem conduzido a queixas dos clientes.” O forte sotaque indiano faz com que o operador esteja muitas vezes sujeito a situações de abuso e xenofobia por parte do seu interlocutor. “Nós, clientes, descarregamos sobre o operador a nossa raiva quando temos queixas contra a empresa ou sentimos frustração relativamente aos serviços prestados. Podemos mesmo ser duros, mal-educados. Desligamos o telefone e não pensamos mais no assunto. Esquecemos que por trás da linha telefónica existe uma pessoa como nós, que só está ali a cumprir uma função.”
Foi para lhes dar um rosto que José Sarmento Matos os fotografou durante três meses. “Este é um tipo de trabalho que irá desaparecer brevemente. As pessoas serão, num futuro próximo, substituídas por máquinas que cumprirão a mesma função. A realidade do call center tem os dias contados e estes operadores nunca terão um rosto. Eu quero fixar-lhes o rosto e que as pessoas o conheçam. Quero humanizar as vozes que estão do outro lado da linha.”
Veja a fotogaleria completa no P3
Um desafio logístico
How Can I Help You?, que ainda se encontra em desenvolvimento, levanta grandes desafios, em termos de produção. As empresas que José Sarmento Matos contacta mostram enorme resistência em permitir a entrada de um fotógrafo. “Os operadores lidam permanentemente com informação confidencial: números de cartão de crédito, dados pessoais. Expliquei muitas vezes que o meu interesse não estava nos ecrãs, mas em muitos casos a direcção assume simplesmente uma posição irredutível.”
Ao mesmo tempo que se debruçava sobre o tema dos call centers em Manila e Bombaim, o fotógrafo ia vivendo o quotidiano naquelas cidades e criando um registo paralelo em que descreve as suas migrações pendulares, os relacionamentos que foi desenvolvendo com os locais, a atmosfera dos lugares. A exposição no Espaço Santa Catarina inclui fragmentos desses registos: Nowhere in Manila e Commuting in Mumbai são os títulos das séries complementares.
Presentemente, José Sarmento Matos é professor da cadeira de Fotografia Documental na faculdade onde realizou o mestrado e faz trabalhos fotográficos, em regime de freelancer, para marcas multinacionais que têm sede em Londres. Nada indica que o regresso a Portugal esteja para breve. “Talvez o 'Brexit' me force a mudar de vida. De outra maneira, por enquanto, não tenciono voltar.”