Catarse de um homem no lado de dentro do país

Por detrás do projecto Homem em Catarse, e do guitarrista de Barcelos que lhe dá corpo, há um sentido literal: Viagem Interior, que agora chega às lojas, é uma alegoria sonora de um Portugal que vive sem correr mas também sem que o ouçam.

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Catarse, dizem os dicionários, é purificação. Ou, citando Aristóteles, uma purgação das paixões por meio da arte. E talvez tenha sido esta que levou o guitarrista e compositor Afonso Dorido a idealizar Viagem Interior, o seu terceiro disco, a olhar para um lado de Portugal muitas vezes na sombra.

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Catarse, dizem os dicionários, é purificação. Ou, citando Aristóteles, uma purgação das paixões por meio da arte. E talvez tenha sido esta que levou o guitarrista e compositor Afonso Dorido a idealizar Viagem Interior, o seu terceiro disco, a olhar para um lado de Portugal muitas vezes na sombra.

Nascido em Barcelos, em 1982, Afonso Dorido faz parte da banda Indignu, formada naquela cidade em 2004 e que prepara agora o seu quarto disco. “É uma banda um bocado pitoresca, que evoluiu de fazer versões à Peste & Sida do Jorge Palma para o som que temos desde 2010. O álbum desse ano [onde participou Valter Hugo Mãe, que escreveu a letra de Duzentas promessas para um mundo melhor] esgotou há pouco tempo.” E já lançou dois álbuns em nome individual: o EP Homem em Catarse (2013) e Guarda-Rios (2015), este último, diz ele, “feito em duas noites.” Viagem Interior, o seu terceiro trabalho como músico e compositor, chega hoje às plataformas digitais e às lojas e tem dezassete temas, cada qual com o nome de uma localidade do interior português: Tua, Portalegre, Vila Real, Évora, Tomar, Beja, Bragança, Monchique, Portas do Ródão, Lamego, Alqueva, Régua, Covilhã, Alcoutim, Monsanto, Mértola e Guarda. O litoral está ausente. “A mais próxima do litoral”, diz Afonso, “será Monchique [Algarve], mas para mim é interior.”

Viagem física e mental

Afonso esteve em todos os lugares que dão nome às músicas (algumas são canções, ele também canta). Uma viagem física, mas também mental. “Há uma bipolaridade temática. É uma viagem ao meu interior, porque o projecto é muito de mim. Mas desta vez há algo exteriorizado na prática, viagem que eu fui fazendo nos últimos anos.” E foi em Évora que a ideia do disco lhe surgiu, numa visita em 2012. “Achei que era o bom o interior ser desembrulhado, ser mostrado, porque muitas vezes é escamoteado completamente. Então senti necessidade, com o que eu posso fazer, escrever música, escrever canções, de me deixar inspirar. E propus-me a mim próprio esse desafio: fazer o interior, desde Rio de Onor. E neste caso eu digo: ‘os lobos de Rio de Onor não se ouvem em Lisboa’, que é o mesmo que dizer que as vozes do interior não chegam à capital. Aliás, o tema Bragança tem uivos de lobos mesmo no parque natural de Montesinho, quis que fosse muito real.”

Os dezassete nomes escolhidos são apenas alguns dos que verdadeiramente visitou, mas Afonso vê os ausentes também reflectidos neles. “Chaves, Vila Pouca de Aguiar ou Valpaços, por exemplo, estão retratados em Vila Real, ou na Régua, ou em Bragança. O interior aqui tem dezassete faces, mas está todo retratado. A viagem, física, foi feita de norte para sul, e terminou em Monchique.”

A estrutura dos temas assente no som da guitarra eléctrica, mais percussivo ou planante, em riffs ou em melodias que exploram o eco ou a distorção para se fazerem sentir com maior intensidade. Há sugestões dos Dead Combo, mas também de Angelo Badalamenti ou até dos Pink Floyd (Covilhã, por exemplo, tem reminiscências, talvez inconscientes, de It’s all over now, baby blue, de Dylan). A voz de Afonso cruza, mais na pose que no tom, algo de Tiago Bettencourt e de António Variações, embora ao longo das audições se vá revelando com uma expressividade própria, interiorizada. E se há aqui algum tema marcadamente “radiofónico”, será Monsanto: “Uma sombra de pedra aqui tem uma raiz/ uma aldeia pode ser um país.” E sobretudo o refrão: “Não é lamento, não é lamento, não.”

O processo criativo foi impulsionado, diz Afonso, pela inspiração do momento. “Apaixonei-me por certas coisas que vi, deixei-me levar e propus-me fazer um disco, Claro que não disse: ‘vou fazer um tema sobre a Guarda’. Eu nunca saberia que iria acontecer aquilo daquela forma. Para muitos portugueses, a Guarda é viagem, é aquilo que fica antes de Vilar Formoso, uma aragem. Alguém com sentido geográfico, dirá que nós em Bragança estamos mais perto de Madrid e eu, que gosto muito de brincar com as palavras, escrevi ‘Bragança tão perto de França’, porque há uma localidade de Montesinho que se chama França. Eu bebi um bocado todos aqueles escritores portugueses de canções, e há um bocado de Reininho aí, nesse jogo de palavras.” Musicalmente, as influências assumidas por Afonso Dorido como Homem em Catarse passam por grupos como os Dead Combo. “Não posso negar, embora eles sejam mais western, mais fado, mais terra. Num sentido poético gosto muito da Lula Pena, tem uma abordagem muito própria, o que não quer dizer que haja influências directas. O fado também me influencia. E há aquela movida pulse rock, que abraço um bocadinho nas palavras e na minha forma de ver as coisas. David Gilmour, Sigur Rós, Explosions In The Sky, tudo isto eu vou beber fora. O que sinto ao tocar, vou beber dentro.”

Do punk à poesia

Afonso Dorido teve formação de guitarra clássica aos 14 anos (“tarde, na minha opinião”), depois tornou-se ele próprio professor. “Não é que eu seja velhito, mas orgulho-me de ter ensinado vários dos actuais músicos de Barcelos a tocar.” Com 35 anos em 2017, Afonso Dorido diz que nasceu “no ano do disco Por Este Rio Acima, do Fausto. É outro artista de que eu gosto muito, embora não se note no que eu faço todas essas influências. Arranjei há dias um vinil do Carlos do Carmo e tenho andado a ouvi-lo. Gosto disso, de tudo o que é nosso, não por ser nosso mas por me sentir parte disso. Cresci a ouvir muita mais directa, mais punk, e foi por volta de 2010 que comecei a compor coisas diferentes. Porque eu sempre escrevi, comecei a partilhar poesia com o Valter Hugo Mãe ainda ele não tinha a projecção mediática que tem hoje.” E há o Brasil, que ele diz que é preciso ter em conta na expansão da música portuguesa. “Dois músicos que me influenciam são o Marcelo Camelo e o Rodrigo Amarante.”

Produzido por Filipe Miranda (fundador dos Kafka, que também tocou bateria e percussões no disco), Viagem Interior foi gravado por Álvaro Ramos (Capicua, Clã, Peixe:Avião) e masterizado por Miguel Pinheiro Marques (Capitão Fausto, Keep Razors Sharp, Filho da Mãe). “Um porto quando é alegre, é o certo para atracar”, canta ele em Portalegre. Experimentem e confirmem.